Os poemas selecionados na chamada da Subversa, "Sejamos Pornográficos?", foram os seguintes:
Esse último poema – diferentedos outros dois – não me pareceu muito interessante numa primeira leitura. Inicialmente, o li como um poema do reconhecimento que remeteria a uma pornografia popular que gira em torno do fato de um homem ser bem-dotado. Mas, sob a influência da Morgana Rech e após reler esse poema várias vezes, me convenci que ele merece ter sua existência reconhecida na Subversa. A razão é que esse poema se vale da vagueza de um modo radical e insólito que levanta mas não permite responder as mais variadas questões. Por exemplo, será que esse poema apenas aparenta ser trivial mas esconde algo mais profundo? Esse poema é uma crítica à mencionada pornografia popular? Seria seu eu-lírico uma mulher irônica? Há nesse poema uma crítica “sutil” ao tipo de masculinidade associável ao Bolsonarismo ou mesmo ao poder em geral? Não será essa crítica “sutil” ela mesma bem óbvia de modo que a leitura “profunda” remete a uma obviedade comparável àquela da primeira leitura? Será esse poema acerca de um tipo de lesbianismo? etc.
Outro poema cuja existência merece ser reconhecida aqui é o “Sodoma e Gomorra”, de Isabella Ingra. Isso porque ele articula uma espécie de paradoxo inesperado. Por um lado, nesse poema, estão presentes variadas expressões, como “foder gostoso”, que provavelmente incomodariam um conservador judaico-cristão. Por outro lado, na sua essência, esse é um poema conservador judaico-cristão. Afinal, ele aponta para uma visão de mundo que pode ser lida como aferível ao Genesis 19. Essa visão de mundo associa pecado ou pornografia ao excessivamente libertário e, sendo assim, conectado ao sonho de criação de impérios. Por exemplo, o sonhado pela eu-lírica, pelos amigos dela ou pelos que moravam em Sodoma e Gomorra. Essa visão de mundo se baseia ainda na tese que Deus precisa punir esses excessos para que os interesses comuns mais propriamente igualitários sejam defendidos. Por fim, a visão de mundo em questão remete ao conflito aparentemente impossível de ser resolvido entre os pecadores que sonham libertariamente com a criação de impérios e um Deus que igualitariamente os pune por isso, ao levar todo e qualquer império ao fracasso.
Outro poema cuja existência é reconhecida nessa chamada da Subversa é o “I.”, de Giovanna Medeiros Mariotto. “I.” me parece interessante porque ele trata da pornografia, remetendo a uma disputa metafísica; o problema mente e corpo. Um modo de formular esse problema é alegando que ele diz respeito à relação entre o mental e o físico. Parece que é somente à luz da existência do mental que faz sentido se valer de expressões como “pornográfico” ou, para colocar nos termos de “I.”, “sexo visceral”. Já, à luz da existência do físico ou do químico reduzível ao físico, outras expressões encontradas nesse poema – como “ródio”, “oxidação”, “carbonilação”, “metaestabilidade” etc – parecem mais pertinentes. Mas, então, qual a relação entre esses dois tipos de expressão? Elas se referem ao mesmo fenômeno? A dois fenômenos diferentes? Qual dessas expressões é mais fundamental? Uma delas é reduzível a outra? Há uma tradução entre elas? Existe uma definição ou um substrato físico ou químico de “pornografia”? “I.” motiva questões como essas que são bem diferentes daquelas dos outros dois poemas selecionados nessa chamada.
Isso é evidência que esses três poemas são bastante diferentes. Mais: os critérios positivos – indicados nos últimos três parágrafos – adotados para selecioná-los foram diversos. Negativamente falando, acho, porém, que todos esses poemas têm a característica de não serem facilmente interpretáveis como poemas do reconhecimento ou modernistas normativos. Foi por isso também que eu os selecionei, mas não sem antes considerar algo que os mais de cem poemas enviados nessa chamada me fizeram pensar: que quiçá existe uma espécie de hierarquia entre poemas do reconhecimento e modernistas normativos. Quero dizer, mais diretamente, que talvez um poema do reconhecimento possa ser melhor que outro do mesmo tipo. Similarmente, talvez existam poemas modernistas normativos que são melhores do que outros poemas da mesma espécie.
Daí, eu imaginar um possível interlocutor me perguntando: Existiriam então poemas do reconhecimento ou modernistas normativos que não são “triviais” ou “ingênuos” e que são até mesmo “bons” qua poemas do reconhecimento ou modernistas normativos? Não sei se gostaria de ir a ponto de fazer essa concessão. Diria apenas que alguns dos poemas recebidos mas não selecionados nessa chamada não me pareceram muito “triviais” ou “ingênuos”, apesar de serem, na minha leitura, poemas do reconhecimento ou modernistas normativos. Por conta disso, cheguei a pensar em publicá-los. Mas não assim o fiz sob quatro bases.
Primeiro, acho interessante que a Subversa tenha uma linha editorial nítida; a publicação de poemas caracterizáveis como do reconhecimento ou modernistas normativos tornaria isso difícil. Segundo, acho interessante que essa linha seja diferente das demais mais ou menos vagas que podem ser aferidas a outras seleções de poemas; seleções essas articuladas por aqueles que se autorizam a não justificar tais seleções publicamente. Terceiro, existem outros lugares que podem dar cartaz aos poemas que não foram selecionados nessa chamada. Quarto, os três poemas selecionados parecem se destacar. Isso por conta das razões elencadas acima; não porque eles são assinados com nomes próprios que usualmente se referem ao que se chama de “mulher” (tendo em vista nossa condição histórica atual, sinto ser preciso ressaltar).
Essas bases me parecem plausíveis; não sei até quando assim vou o crer. Na verdade, talvez valha a pena confessar que, quando eu tinha meus vinte anos, eu acreditava na pertinência de escrever textos filosóficos que aferiam a poemas contemporâneos predicados derrogatórios, como “ser um poema do reconhecimento trivial”, “ser um poema modernista normativo ingênuo” ou outros bem mais derrogatórios. Minha base para proceder assim era que os autores desses poemas veriam alguma pertinência nos meus argumentos e dialogariam comigo por meio de textos igualmente filosóficos. Aos meus trinta anos, comecei a crer que só dialogariam comigo, por meio de tais textos, poetas a cujos poemas eu aferiria predicados não-derrogatórios como “ser interessante em algum sentido qualquer desse termo”.
Hoje, tenho quarenta anos. Não acredito lá muito na pertinência de almejar dialogar filosoficamente com poetas contemporâneos. Com esses, há, no máximo, alguma espécie de “diálogo” implícito e não propriamente filosófico por meio de poemas. Mas mesmo esse tipo de “diálogo” não é recorrente. Ora, acho que editores de coletâneas de poemas, como Flávia Iriarte ou Eduardo Lacerda, concordariam que poetas contemporâneos usualmente não estão lá muito interessados em ler outros poetas contemporâneos, mas, sim, em serem lidos. Logo, o que se dá recorrentemente entre poetas são relações de trocas de favor com o intuito de obter dinheiro, poder, fama ou alguma espécie de carinho gostoso, amor venenoso.
À luz disso tudo ou apesar disso tudo, ainda tenho fé que a presente justificativa – assim como a última – expressa algo que podemos chamar de não-violência. Eu também tenho fé que alguns leitores desse texto verão a pertinência dessa não-violência ou, ao menos, pretensão de não-violência.
Felipe G. A. Moreira é doutor em Filosofia pela Universidade de Miami. Publicou as coletâneas de poemas Por uma estética do constrangimento (2013) e FGAM (2021) e o livro de filosofia The Politics of Metaphysics (2022). No momento, é Pós-Doutorando na USP, onde desenvolve pesquisa sobre a filosofia da lógica, sob a supervisão do Prof. LD Edélcio Gonçalves de Souza. O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Brasil. Processo 2024/13530-2. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP. https://www.felipegamoreira.com/