Tenhamos um pouco de esperança (Pedro Moreira)

Nem tudo está perdido: apenas

as paredes estão, as estrelas cadentes,

os sapatos e malas, os pingos de chuva.

Ora essa: tenhamos esperança. Nem

tudo está resolvido: apenas as costas

se vão, os dedos sem carícias, os terremotos

japoneses, as guerras a sós. Ora veja:

ainda tocam-se discos. Nem tudo foi

milagre. Nem tudo foi por pouco. Há

ainda o perdido, a fortaleza. Há ainda

todas as resoluções antes de amar.


CIRCUNSTANCIAL

 

Olhe para as circunstâncias: não era para termos

sobrevivido

a essa infância. Não era para

termos escapado

dessa vizinhança. Mas aonde chegamos

não é lugar de descanso.

Um começo imperativo

nos assombra em todo canto.

Olhe para as circunstâncias:

não devíamos ter escapado das estatísticas.

Se aqui estamos é por teimosia.

Sobrevivemos

o inevitável. Ganhamos um pouco de peso. Mas olhe

para as circunstâncias: a gola em que nos enfiamos

é menor que o pescoço,

menor que tudo que já tivemos,

fomos, e vimos. Sobrevivemos

à fazenda de cana-de-açúcar, mas olhe

onde fomos parar: no meio de uma colheita.

 

 

Vamos ser honestos,

essas mãos contrastam muito com esse piso de mármore.


NUNCA FORAM VOCÊS OS QUE MORRERAM

 

Mas veja pelo lado bom: ainda

somos jovens para morrer.

Temos, de certa forma, uma vida.

A taxa de mortalidade do futuro

nunca esteve tão alta.

Não temos certeza de mais nada.

Dizer se tornou burocrático.

Mas agora sabemos que é impossível

agradar a todos, mesmo

dizendo que "nem a gregos e a troianos".

Soltamos menos fogos de artifício.

Encerramos as votações em muitos

países.

Corremos menos. Comemos mais.

No meio da rua, um grito comunitário:

olhe pelo lado bom das coisas:

ainda é possível se salvar

do mundo. Ainda existem portas abertas:

as igrejinhas, os barracões, e os bares.

Sim, ainda é possível o genocídio, mas

 

veja pelo lado bom das coisas:

"nunca antes fomos nós os que morreram."


Pedro Moreira (Itaí, SP)