Percepções e figurações do amor na novela Sabina (1949), de Amadeu de Queiroz

Piero Detoni

Piero Detoni (Universidade de São Paulo)

A invenção de um amor
 

Certamente muitatinta já foi gasta na história da literatura, ao menos ocidental, no que diz respeito à tematizaçãodo amor eros. Mesmo que recorrentemente tratado e reelaborado ele é, ainda,capaz de se impor em razão da sua franca aura misteriosa, o que justifica a sua constante reinvenção. Sabemos que essa relevante permanência discursiva acerca desse amor foi abordada por diferentes ângulos e matizes, o que proporciona interesses e compreensões diversificadas, partindo, por exemplo, de Platão (séc. V a. C), passado por André Capelão (séc. XVII), até chegar no mais contemporâneo Stendhal (séc. XIX).

Não fugindo ao cânone Amadeu de Queiroz (1873-1955) também se pôs, de forma original, a elaborar essa continuidade literária. Narrado em primeira pessoa, sem que o nome do protagonista da trama fosse revelado, o que talvez ofereça margem para que pensemos que é uma história de vida conhecida por Queiroz, mesmo que ficcionalizada, a novela Sabina conta, justamente, as ilusões que envolvem o amor eros. No caso, falo de ilusões não no sentido de decepção, mas no do amor-fantasia, quea vulgata tende a chamar de platônico. O narrador tivera umrelacionamento idealizado com a personagem Sabina no passado e agora queela se apresentava como uma jovem viúva ele pretendeu reviver algo que somente a sua percepção captara. Assim, aquela antiga história inventada se atualizava.

Sabina problematiza, no limite, as formas como o amor pode encobrir a realidade imediata das coisas, em um estado tamanho de fantasia que beira o onírico. As formas amorosas movidas pelonarrador eram todas imaginadas. Nesse sonho constante, encontrava-se Sabina. O personagem que conta a história ficcionalizava totalmente a sua relação com ela, em um misto de ternura e de melancolia. É dito que a sua inspiração eram os romances antigos, aqueles enredados em amores e em vinganças. No fundo, o personagem romanceou o seu amor pela referida moça, que se casara, no passado, com outro homem, deixando ao narrador somente as lembranças de uma quase-história com um futuro-passado (im)possível:

"Nesse doloroso instante de nossa vida, quando a julguei irremediavelmente perdida para mim, quis guardá-la indelével na lembrança. Fitei-a, então, demoradamente, e achei-a mais linda, mais encantadora do que nunca” (Queiroz ,1949, p. 12).

O amor em questão é mais uma construção onírica, mais fantasiosa do que verdadeira. O que estava em jogo não era, de fato, um amor correspondido, mas, sim, uma situação amorosa inventada como forma de orientação de sentido de mundo. Sabina era um pretexto para que o sujeito amante possuísse um objeto de desejo capaz de nortear toda a sua introspeção. Ela era, em última medida, fruto da sua imaginação. Não existia, por exemplo, a Sabina em si, mas somente aquilo que ele projetava como sendo as suas qualidades, sendo bastante autoritário nesse quesito.

Essa perspectiva acerca do amor não é nova em termos de elaboração literária (e filosófica), podendo chegar ao pensamento platônico antigo, fortemente enraizado na memória da cultura ocidental. Muito embora haja uma grande distância no tempo entre Platão e Amadeu de Queiroz, ocorre-nos que essa forma de sentimento mantém certa dimensão intocável, qual seja, a sua ascendência sobre o sujeito desejante orientando as suas aspirações individuais de maneira totalizante. Dito de outro modo: o amor se destaca da vontade e da racionalidade do agir humano. Segundo a perspectiva aberta por Platão, a fórmula do amor respeita o desejo de geração e procriação do belo, apresentando-se como um eixo existencial e,paradoxalmente, fazendo com o ser mortal participe da imortalidade (Platão, 2003).

“O amor, nestes termos, é a via de elevação que diferencia o indivíduo, tornando-o superior, embora submisso aos seus desígnios” (Costa & Andrande, 2018, p. 138).

A força dessa forma de encarar a vida amorosa é tamanha que ela termina por se enredar completamente ao agente social que a sente, logo, passando de objeto à sujeito, em uma verdadeira, e incontornável, troca de posição. A novela Sabina, escrita para ser lida brevemente nos bondes paulistanos da década de 1930, dialoga, não restam dúvidas, com essa tradição de pensamento em razão de colocar luz alta sobre o amor irrealizado e, via de regra, necessariamente
perfeito. Uma força tão potente que beira a uma espécie de encastelamento sublime. O narrador de Sabina, que é o personagem principal do enredocriado pelo escritor pouso-alegrense (MG) Amadeu de Queiroz, demonstrará que a característica sobressalente desse amor é a sua face considerada imaculada, ou seja, sem a consumação carnal, “(...) e isso significa que, verdadeiramente, ele só está completo quando é o alvo da devoção e se desvirtua quando este alvo
é deslocado para um sujeito” (Costa & Andrande, 2018, p. 138).

Em sua imaginação existiam, sendopossível argumentar, duas Sabinas. Esse raciocínio binário era importante para que o narrador confirmasse as suas projeções quanto à amada. Uma primeira face da sua personalidade seria, nesse sentido, aquela que amava e sempre amou, com especial atenção para o amor nutrido pelo protagonista. Então o autor fantasiava esse suposto amor: “(...) se manifestava pelos olhos e pela sua voz; a alma hesitante e indefinida que buscava a solidão para devanear os horizontes para ter saudades e o silêncio para sofrer de amor... a ama que me pertencia” (Queiroz, 1949, p. 13). É interessante como o narrador entrevê, através da própria gestual de Sabina, sinais desse amor, o que resultou, certamente, em grandes enganos. Já a outra faceta de Sabina refletia o espelho do mundo: vaidosa, amante de riquezas e da moda, namorada de vestidos e da dança, além de submetida aos ditames dos bons princípios ditados pelos tios e seus parentes mais imediatos. Sabina supostamente vivia essa dúvida interior, sendo que foi bastante cômodo ao narrador desqualificar os seus desejos íntimos, os considerando frívolos ante a celebração de um grande amor apreensível nos mais variados níveis comportamentais. O seu ego é tão grande que tudo gira em torno das suas perspectivas de mundo, não havendo espaço para as escolhas e performances de outrem. Como é afirmado por Amadeu de Queiroz:

Ingênuo, egoísta, eu entendia que a mulher deve seguir o homem que ama, mas o mundo – na pessoa dos tios e do rival vencedor – contestava, ensinando que a mulher deve amar o que acompanha” (Queiroz, 1949, p. 15).

Essas considerações vão ao encontrodas reflexões do sociólogo alemão Georg Simmel (2001) em sua obra Filosofiado amor. Nesta, da mesma forma como Queiroz deixou entrever, o amor está aproximado do egoísmo. Para Simmel, ilustrando as ações do narrador de Sabina, o amor se enreda mais propriamente ao seu objeto, isto é, o objeto amado. Ele se conforma de maneira que, estando estabelecido, rejeita o eixo diretor que o mediou, sendo figurado enquanto um acontecimento transcendental. Pensando de outra maneira: o amor é, portanto, entendido a partir de uma dinâmica transcendente à existência em si, quer dizer, a partir da relação na qual ele derivara. O sujeito amoroso, desejante, compreende que a sua vida é tão somente intercedida pelo amor do sujeito amado e prontamente a serviço dele. Ainda dialogando com as ideias propostas por Georg Simmel vemos que no amor, e isso é importante pra que compreendamos o enredo de Sabina, existe uma verdadeira condição de tragicidade que agencia, entre os sujeitos, a obrigação de fundir-se com a pessoa amada de modo a se tornarem irmanados.

O sujeito que na história se arroga amante é extremamente possessivo. Acredita que Sabina lhe pertence integralmente como se fosse algo de direito, inclusive, podendo se apossar do seu corpo e dos seus pensamentos. Tudo isso baseado em um delírio:

"Tive ciúmes confesso. Mas se tivesse amado Sabina quando ela, de direito, pertencesse a outro, não o teria tido. Aquele que ama a mulher do próximo não tem ciúmes do seu legítimo dono, cuja posse, reconhece, e não respeita. Tive ciúmes porque Sabina me pertencera de primeira mão; fora sempre minha e o marido, em tal caso, afigurava-se usurpador de direitos líquidos" (Queiroz, 1949, p. 15).

Não se percebe o relacionamento de fato entre Sabina e o narrador em nenhuma oportunidade. Ele mesmo revela: “E não pude olhar, nem lhe falar, nem ao menos murmurar uma queixa” (Queiroz, 1949, p. 16). O estado de embriaguez era tamanho que Sabina foi considerada uma ingrata mesmo não oferecendo nenhuma sinalização real que pudera entrever os seus sentimentos. A face egoísta do narrador é tamanha que ele não fantasia somente o relacionamento em si, mas prefigura, também, as ações de Sabina. Tudo é fruto da sua imaginação, que cria uma realidade que o aprisiona, mesmo que inicialmente isso não seja percebido, dado que prefere pregar a beleza da idealização. Acompanhem:

“Pobre Sabina, pobre de mim! Padecemos de longe as nossas dores gêmeas, sofrendo calado a mágoa da separação” (Queiroz, 1949, p. 16).

Amadeu de Queiroz deixa claro que isso é uma construção da imaginação do protagonista que narra. O leitor consegue acompanhar que ele está em uma espécie de transe. A atualidade de Sabina é que essa forma de experimentar o amor é recorrente na vida ordinária em todos tempos, sendo, conforme ele mesmo deixa supor, o motor dos mais diferentes dramas humanos vertidos em prosa e verso século após século. O idealismo é completo segundo a voz do narrador, pois se deseja um mundo em que haveria uma simetria absoluta na relação amorosa em um registro envolto por uma aura imaculada:

“Pobre de mim, pobre dela, que demos os nossos corações ao mesmo amor; que vivemos em duetos de olhares; adejando por sobre a vida, sem pensar jamais no materialismo vulgar dos sexos, e outros ridículos que envergonham os que amam sob as estrelas” (Queiroz, 1949, p. 16).

O que se pode depreender da narrativa de Queiroz é que há um ponto de convergência que reúne todas as percepções acerca do amor de acordo com o narrador de Sabina: a involuntariedadeamorosa. Tal cruzamento de proposições traz consigo a ideia de sua elevaçãoabsoluta, de servidão, de registro fora da lógica e deimpermanência ante a sua disposição erótica. Nesse sentido, o eros passaa performar autonomicamente, na medida em que ele se enreda junto à constituição daquele sujeito que narra a história, que, cabe notar, e ele mesmo é consciente disso, mostra-se prisioneiro dos seus desígnios.

 

Uma metafísica do amor

O autor intensifica, coma partida de Sabina, a metafísica amorosa do narrador, dado que agora o seu envolvimento era com a sua memória, que devemos salientar não é uma instância direta para o real, mas absolutamente móvel. Por isso ele interrogava, simulava e pensava sobre o ocorrido, sendo traído pela memória e por seus próprios desejos. Isso o levava a um movimento contínuo e repetitivo em que as indagações apareciam como um óbice à suas aspirações amorosas. Quanto mais elas apareciam mais o narrador se enganava com a situação, na medida em que tinha uma postura sempre negacionista. A dúvida vinha e a imagem de Sabina se movimentava, sendo algo que oferecia uma carga angustiante ao narrador, porquanto a sua intenção era de que ela ficasse inalterável.

O narrador jamais esquecera a sua amada e pela memória ativava cenas daquele passado amoroso.
Percebe-se que a sua memória é totalmente inebriante:

“As minhas recordações, Sabina, a bem dizer não se extinguiram de todo. Em certas horas, a um saudoso perfume que passa, a uma antiga melodia, elas despertam, vivem de novo a nossa mocidade e tornam depois às sombras em que moram” (Queiroz, 1949, p. 20).

Ao que sugere o livro, o personagem já não sofre mais com aausência de Sabina, se reconfortando, melancolicamente, através das imagens do passado que cria. Estamos diante, talvez, de um dos pontos mais fundamentais dessa pequena novela: as traições da memória. Amadeu de Queiroz quer revelar que o sentimento amoroso é capaz de perverter a memória, tornando-a incompatível com a verdade das coisas passadas. Sabina era obra da imaginação do narrador e, nesse caso, ela estava em profundo descompasso com a realidade. Não que interditemos a memória e a imaginação como formas de acessar o real, porém o escritor mineiro queria retratar os seus enganos e as suas distorções.

Na perspectiva do narrador havia um quê de natural no amor, quer dizer, uma disposição inata que o acompanhava. Ele seria, dessa maneira, imuneà passagem do tempo, o que favorecia a tese de Queiroz acerca dos danos que esse sentimento causava junto à memória. Ora, o que caracteriza ontologicamente o tempo é a transformação. Sendo o amor dotado de historicidade é certo que também se modifique com o tempo, dado que é criação humana. Mas ao tornar o amor algo inato e natural acontece o seguinte movimento: as imagens imutáveis nunca se adequam à realidade alguma, porquanto esta é fundamentalmente movente.

“Perdoem-me, por favor, e não julguem mal de um pobre homem que aos trinta anos não esquecera os seus tão próximos vinte e quatro! Lembrem-se de que um amor não chega a dormir de todo, e apenas cochila, acorda mesmo de repente” (Queiroz, 1949, p. 27).

Percebam que o amor pregado pelo narrador não carece de nenhum registro temporal e acontecimental, sendo possível dizer que ele é supra-histórico:

“Demais, entre os que amam as promessas não se fazem por meio de documentos ou diante de testemunhas, são transações feitas sem prova, de propósito para facilitar os calotes” (Queiroz, 1949, p. 28).

O amor aparece onipresente ante a temporalidade, tornando a atmosfera histórica congelada em termos de substancialidade. Vejamos, então, a narrativa de Queiroz:

“Fosse Sabina como fosse tanto se me dava. O meu fado era amá-la do mesmo modo, sempre fora dela mas dentro de um sonho único e contínuo, como aquele meu velho pensamento elástico” (Queiroz, 1949, p. 36).

Nosso argumento ganha, pois, maior força ao sabermos que para o narrador mais valia a permanência do seu estado onírico de enamoramento do que o próprio amor de Sabina. O que bastava era que ela o deixasse amar. De uma forma ou de outra, ele amava pelos dois. Era um mundo idealizado, próximo da mais vulgata metafísica. Acompanhem esta fala:

“O meu amor nasceu de mim e morava comigo, egoisticamente, sem jamais tentar aboletar-se no coração de ninguém” (Queiroz, 1949, p. 37).

Esse narrador criara um mundo paralelo para que esse amor pudesse se desenvolver. Ele estava totalmente fora da realidade. Não era o seu amor que deveria se adequar a sua situação com Sabina, mas era a circunstância que necessitava se acomodar aos ditames desse amor-fantasia. Era uma realidade fictícia em seu sentido mais ordinário, isto é, pura criação. Isso não deixava de ser uma violência ante Sabina, marcada por um sentimento que imobilizava as suas ações. Esta é a legenda do amor do narrador:

“O mundo em que ele vivia era todo seu, todo do seu espírito e da sua imaginação” (Queiroz, 1949, p. 37).

O narrador é um sujeito que evita a realidade tangente que circunscreve a sua performance social no mundo da vida. É certo que a imaginação é capaz de tornaro universo social mais habitável, até mesmo mais suportável. Também é certo queos sonhos são capazes de prefigurar a realidade. Eles têm força agenciadora. Contudo, o que o narrador desejava negava qualquer plano de imanência possível. Era um extra-mundo, um supra-mundo, habitado por personagens sem pregnância com a
realidade, como a própria Sabina. Segundo o enredo de Sabina:

“Porque nós é que criamos o mundo em que vivemos; criamo-lo conforme o nosso sonho, os nossos desejos íntimos e a nossa sensibilidade” (Queiroz, 1949, p. 37).

Interessante recobrarmos a capa do livro. Nela há um homem contemplando um quadro. É o próprio narrador visualizando Sabina. O que a imagem deixa entrever é que ele não tem à disposição a Sabina real, mas a sua representação, que é necessário dizer está registrada de acordo com o seu desejo. Sabina é, verdadeiramente, um quadro que inspira a imaginação, mas longe de proporcionar um enlace possível com a realidade das coisas. Não estamos defendendo que exista uma realidadecom um estatuto superior ao da imaginação. O que está em questão é a suspensão do plano da imanência realizado por esse sujeito desejante:

“Por isso eu não amava a Sabina do Mundo, amava a dos sonhos, pela imaginação lírica da arte” (Queiroz, 1949, p. 37).

O mundo imaginado pelo narrador não deixa de ter um tom autoritário, na medida em que é habitado apenas por agentes que ele autoriza e que estão em comunhão com os seus propósitos. Negava, assim, o contingente, o circunstancial, o casuístico. Essas dimensões eram negadas pelo narrador. É possível afirmar que este narrador, que é o personagem protagonista da novela, é complemente egoísta, pois nada pode sair do controle do pequeno universo que imaginara:

“Os mundos em que vivo são os meus mundos, povoados por seres íntimos que me amam, me obedecem, me dão as minhas ternuras e falam comigo as minhas falas” (Queiroz, 1949, p. 37).

Mais do que platônico, isso beira a um estado de esquizofrenia, tomada em sentido literário. Maisuma vez ressaltamos que nesse mundo imaginário em que o amor por Sabina é cultivado ela aparece imóvel, sempre a mesma, o que a torna distante da realidade, posto que esta é sempre movente ante as múltiplas temporalidades que a conformam. Assim:

“Num desses mundos era amada Sabina, sempre a mesma, eternamente jovem e pura... solteira, viúva ou casada com quer que fosse” (Queiroz, 1949, p. 37).

No limite, o que o narrador amava não era Sabina, mas a sua imagem tal qual na capa do livreto. Ele próprio admitia essa situação:

“O meu amor por Sabina era como a flor de que não resulta semente: coloria e perfumava-me a existência sem nenhuma finalidade real” (Queiroz, 1949, p. 37).

Vale se ater, nessa direção, na ideia de que esse amor não produzia “semente,” porque essa imagem sinalizava, de uma forma ou de outra, que era um sentimento incapaz de passar por todo um percurso existencial. O narrador revela a sua predileçãopor esse tipo de amor-fantasia. Ele não nega, em todo livro, a suaposição. Segundo seu raciocínio, os homens sem inspiração, sem espírito criativo e sem imaginação só enxergam na mulher a companheira das suas dores:

“a auxiliar de seu trabalho; a mães de seus filhos; o cofre de suas economias; o tempero de suas panelas; a dona de sua casa” (Queiroz, 1949, p. 38).

Nesse ponto o autor, ao reforçar o seu argumento, não deixa de tratar o amor com ternura, algo que pode, sim, aviventar a realidade fria. O amor, segundo o narrador, também demandava atitudes elegantes, olhares e sorrisos, falas de amor, contatos sutis, entre outras coisas. Ele era, terminantemente, contrário a esta situação:

“Tudo é ali, na verdade da vida, no materialismo das coisas, na irremediável vulgaridade humana. Por isso não amam e não padecem de sonhos” (Queiroz, 1949, p. 38).

Porém, o que Amadeu de Queiroz sinaliza é para a desproporção entre realidade e fantasia nessa história de amor.

 

A escolha pelo ascetismo

A Sabina do personagem-narrador deveria ser imaculada, moralmente decidida e insubmissa à opinião alheia. Todas essas qualidades, que vale dizer retiravam a humanidade daquela personagem, serviam unicamente para confirmar a imagem criada pelo narrador sobre ela. Ele lutava de todas as formas para que a Sabina real fosse mascarada por suas dinâmicas imaginativas. Não é que ele desconhecesse a realidade da amada, mas havia a intenção deliberada de fantasiá-la. E não com o intuito de intensificar os atributos de Sabina, mas para que ela coubesse em seus sonhos - esses que, invariavelmente, condicionavam o seu agir. De acordo com a narrativa de Queiroz:

“Diante do seu caso todos (...) fatos pareciam claros, justos e compreensíveis, menos o que existia na realidade: aquela fragilidade de Sabina para resistir as tentações do mundo, às imposições de sua alma dominante e, sobretudo, para dominar a força dos conselhos que lhe deixaram os tios” (Queiroz, 1949, p. 38).

A impossibilidade de prender Sabinajunto ao seu mundo imaginado levou o narrador do livro a se isolar do mundo, a buscar um ascetismo contraproducente, dado que anulava a sua própria vida. Ele se tornou, irremediavelmente, um solitário. Praticamente desconectado com o mundo. Vivia a sua metafísica vulgar diante dos planos de imanência da mundanidade. Se impermeabilizava ante qualquer sentimento contrário ao estipulado pelo seu Eu egoísta. Como ele mesmo apontou:

“Não um solitário no mundo, mas um solitário de emoções, de dores, despeitos e vaidades íntimas, habilmente dissimuladas” (Queiroz, 1949, p. 39).

A situação era melancólica, já que o narrador era um solitário no amor. Vislumbrava Sabina de longe tanto no tempo quanto no espaço, sendo que o seu amor, desconectado com a realidade, vivia de vagas recordações e de saudades imaginadas - "esquecido em minudências do passado".

Essa situação pode ser compreendidapela metamorfose do amor platônico em amor romântico, que está presente em Sabina. É perceptível como essa modalidade de amor, que acompanha as reflexões do narrador da trama, não consegue estabelecer uma correspondência, mas transforma-se num motor que estimula uma busca continuada, mesmo que a custa do seu padecimento. Partindo das reflexões de Maria de Lourdes Borges (2004), que trabalha com o mito de Tristão e Isolda, podemos entender o amormovimentado em Sabina como uma espécie de doença da alma. Essa ideia de um amor não correspondido é a grande tônica dos romances ocidentais. De uma forma ou de outra, a literatura que se preocupa com a temática amorosa apresenta uma contribuição importante para entendermos como o amor é assimilado na modernidade, sobretudo, a partir da sua afirmação romântica baseada na recepção criadora de certo platonismo vulgar. Sabina apresenta-se, nessa direção, enquanto um pequeno tratado dessa forma de cultivo das relações amorosas.

Seguindo a trilha aberta por Freire Costa (1998, p. 150), essas considerações se fazem relevantes para que projetemos na novela de Amadeu de Queiroz as estruturas do amor romântico, que são responsáveis por enfatizar uma “(...) mistura de ilusão e realidade, de ganhos e perdas, de avanços, paradas e recuos no campo das relações humanas” (1998, p. 150).

O amor mostra-se, dialogando com as perspectivas abertas pelo escritor mineiro por meio do seu narrador imaginário, como uma espécie de suportede predicação moral, abrindo espaço tanto para a representação dafelicidade quanto a do sofrimento, que é mais condizente com a novela que nos
propormos analisar por aqui.

O tempo de vida do narrador se esvaziava e mais e mais ele se distanciava do convívio social. Ele, ante a desilusão amorosa com Sabina, se impõe a uma autorreclusão. Acompanhemos o seu relato:

“De ano em ano a convivência mais me afastava da sociedade. Não há para fugir dos homens como conviver com eles! À medida que me libertava da influência da sociedade sobre as minhas ideias, mais longe me sentia dos outros, mais próximo de mim mesmo” (Queiroz, 1949, p. 39).

Este foi o modo virtual como ele se dispôs a conhecer os homens e as mulheres em sociedade, o que o levou, então, a se tornar egoísta, retraído e, por fim, celibatário. Alguém voltado, em última instância, para si e distanciado do mundo da vida, em uma atitude de negação de todas as formas de sentir e de experimentar as emoções. Um sujeito, pode ser dito, impermeável.

Ele se refugia em seu interior, fruto da disposição ascética, do seu Eu egoísta que estabelece as verdades mais profundas. A vida gregária passa, paulatinamente, a ser negada. É na sua autoclausura que ele se encontra com Sabina, movimento que, cabe dizer, também a aprisiona. Desse jeito, a interioridade além de ser uma forma de situar-se fora da imanência é um movimento propriamente de autoconstituição por meio de uma série dedirecionamentos morais, com seus respectivos registros de poder subjacentes. A fuga implica a renúncia ao mundo social, porque é em seu interior que se localiza o seu objeto de desejo, qual seja, a imagem de Sabina. Ela é refém de uma subjetivação altamente moralizante, ao ponto de determinar não apenas os passos daquele narrador asceta, mas como deveria, poderia e/ou seria as performances sociais da sua amada.

O amor do narrador por Sabina é fantasioso. A própria memória, espaço de recordações, o traía quando o assunto era a amada. Ela já não estava, com o passar dos tempos, disponível ante a sua percepção. O problema apresenta-se da seguinte forma: era cultivado um amor idealizado e não havia nada do que se lembrar, o que o levava, inclusive, a duvidar da própria existência de Sabina. Havia, então, uma dupla ilusão: do amor-fantasia e das artimanhas damemória.

“Os muitos anos volvidos esfumaçaram a nitidez dos fatos, dascoisas e da imagem material da minha Sabina longínqua” (Queiroz, 1949, p. 39).

Farei mais uma citação para que o(a)leitor(a) tome consciência do quão irreal era esse amor:

“Estamos afastados um do outro há tanto tempo, e tão poucas vezes nos falamos outrora que não pude guardar na memória, inteiramente, o teu materialismo, a tua vulgaridade humana” (Queiroz, 1949, p. 39).

Interessante este seu raciocínio: ele amava e, por isso, dava existência para Sabina. Por isso ele sofria a perda desse objeto de desejo. Era um luto virtual. Mas ele próprio, ante a realidade do mundo, se indagava: essa dor existia?

De todo modo, se chegava a seguinte consideração: Sabina não poderia existir para o narrador senão em sonho. Seu objetivo era manter uma imagem perfeita de mulher ante a realidade dita mesquinha. De tal maneira que refletindo sobre ela o materialismo ordinário não conseguia, ante a blindagem da sua imaginação, restituir a realidade daquele amor. Por fim, o narrador exclamou: "Sabina, quanto melhor se não existisse!". Ao que parece esse amor-fantasia que fechava as janelas do mundo também o sufocava.

A personalidade do narrador era umarealidade paralela. Ele apresentava-se como um agente intimista, diria mais, “ensimesmado”, no sentido mais simples de voltado para si mesmo. Não foi a relação efêmera com Sabina que o tornou assim, mas o seu próprio desenvolvimento como ser no mundo.

“Muita gente vem ao mundo para comer; para vestir-se e cobrir-se de joia; para ganhar ou gastar dinheiro; para ser rica, jogar e beber; para viajar, falar ou dormir; para se exibir e vangloriar-se. Pouquíssima gente vem para pensar e para viver" (Queiroz, 1949, p. 40).

O problema éque o pensar do narrador era tão dilatado que imobilizava as suas ações. E isso o levou a cultivar dó, medo e desprezo junto aos seus semelhantes. Esse pensar era uma metafísica desconectada com o mundo social. Ele chegou a dizer que a sua atitude caminhava no sentido da fuga de toda forma de convívio. Ou seja, o narrador apenas tolerava os demais homens e mulheres a ele contemporâneos.

Ele colocou, ademais, luz alta nas dimensões do seu existir em que se sublinhava que o seu enclausuramento imaginativo autoimposto também era sombra de desenganos. Ora, a vida contemplativa haveria sempre de ser medida pela realidade. É muito difícil, cabe refletir, estabelecer uma coerência perfeita apenas movimentando o plano das ideias. E, no caso, a noção de ideias está sendo tomadasem a sua carga agenciadora. Amadeu Queiroz, enquanto arguto articulista, ilustra bem o certame:

"Viver como vivemos outros – a vida do homem – é fácil. Mas viver a vida íntima, a da imaginação, da fantasia e do arrebatamento de si mesmo é sofrer em silêncio mostrando apenas um sorriso de mágoa mal dissimulada. É um grande problema viver-se a própria vida! E eu vivia me debatendo entre os mil espinhos de tal problema. (Queiroz, 1949, p. 44)

A sua vida era, em última análise, medida pelos pensamentos e governada, via de regra, pelo raciocínio. Além disso, orientava-se pela observação. Porém, quando o assunto era o amor, a sua tendência era ignorar-se complemente. Por exemplo: a sua falta de maturidade emocional o levara a ser um amoroso tímido, introspectivo, idealizador - como eram, em tese, os sentimentais - bem como fiel ao primeiro amor por julgá-lo único. Esse narrador desejava, no limite, um amor só seu, por isso buscou lutar contra o esquecimento de Sabina ao passo que tendeu a projetar as suas fantasias sobre outras mulheres e outras situações, em um processo virtual de atualização compulsiva de um real pervertido.

 

Os horizontes do (auto)perdão

A melancolia tomou conta do narrador, a internalizando até mesmo para a atmosfera natural circundante, como na ode feita aos crepúsculos solares. Nesses instantes, sensibilizado pelo correr da tarde, ele voltava a pensar em Sabina e, então, “(...) com a compassiva ternura da saudade pôs-se sobre o borralho do passado buscando nele uma brasa viva que queimasse ainda. Mas encontrei nas cinzas uma ilusão apagada” (Queiroz, 1949, p. 46).

Diante disso, não haveria outra solução do que aguardar a passagem do tempo para, enfim, voltar à monotonia dos dias, em que se afiguravam apenas vagas recordações. De qualquer maneira. a personalidade retraída do narrador não se alterou. Mais: ele se autoconvidou para o afastamento, sendo que a sua participação na vida social não era bem aceita por seu espírito.

“O tédio era o meu companheiro das horas desocupadas; as noites passavam lentas e vazias, e as confidências, que animam a vida, já não podiam ser repetidas aos amigos (Queiroz, 1949, p. 47).

O narrador tornara-se, em um só golpe de vista, melancólico, solitário e recluso.

Então houve um encontro inesperado com a filha da sua amada Sabina. Isso aconteceu em uma reunião de amigos. Essa situação tornou rediviva toda aquela aura onírica que envolvia o seu antigo
amor fantasiado. Além disso, a juventude da moça tornava as recordações ainda mais fortes. Como ele próprio revelou:

“Era Sabina outra vez, cheia de ilusões, sem compromissos e sem amores, exposta aos homens e às tentações” (Queiroz, 1949, p. 49).

Era, no limite, uma história encantada que se repetia momentaneamente. É certo que a ocasião também o levara ao despeito, pois o desfecho da história não era favorável ao casal. Mas, no íntimo das suas emoções, encontrava-se grande carga de lirismo que aplacava qualquer sentimento concorrente. Para aquele que buscava romancear a sua história de amor não havia, certamente, espaço para o ressentimento, algo que abalaria o eixo estático daquele enredo. Assim, foi enunciado um adágio sobre o amor que ainda se apresentava latente:

“(...) que nada tinha com a vida vivida por Sabina. Era uma vibração partida de seu sorriso, de sua fala; um sortilégio do seu olhar; anseios identificados de uma vida palpitando sutilmente em sua tez moreno-pálida – halo de fascinação que a envolvia” (Queiroz, 1949, p. 52).

Temos outro testemunho do tipo de amor que atravessara as aspirações do personagem-narrador, em que se percebe que ele era, sobremaneira, antinatural, sendo externo a qualquer forma de sentimento compartilhado. Diria até mesmo que ele era imposto:

“O meu amor nascido dela, do calor da sua mocidade, de um fluído misterioso da vida, era como se uma alma estranha, adejando por sobre seu corpo, procurasse apossar-se dele para realizar a sua metamorfose, como fazem as vespas nos corpos inanimados” (Queiroz, 1949, p. 52).

Mas a melancolia das recordações tornava-se a sua companheira. Um passado que, de alguma forma, tendia em não passar. Não chega a ser um exagero que em diversas situações Sabina se transformava num verdadeiro espectro, mesmo que pelo lirismo tentasse não se entregar ao despeito ou a qualquer outra forma de ressentimento. Havia em torno do personagem grande silêncio e um vazio proporcionado por um grande cenário de solidão autossustentado. É possível afirmar que esse sentimento subterrâneo, derivado dos desencontros com Sabina, era um dos vórtices da sua dinâmica existencial retraída. O lirismo do narrador intensifica essa condição:

“E a solidão foi perturbada pelo soar de passos indistintos que pareciam vir de incomensurável distância e, no entanto, soavam bem perto” (Queiroz, 1949, p. 53).

Estamos, portanto, ante o fenômeno universal da presença do ausente, registro ontológico das lembranças e das recordações (Ricoeur, 2007).

As lembranças de Sabina rareavam,mas o sentimento ainda era presente. Foi, então, para encerrar a obra que o narrador encontrou o caminho para se libertar das amarras daquele amor metafísico, mas que o atingia vivamente em razão do seu estado de incompletude. A solução foi perdoar não somente Sabina, por ter escolhido outras paragens que não a de um relacionamento com o narrador, mas as próprias circunstâncias existenciais, condição primeira para que o agente pudesse restaurar o seu ânimo tanto interior quanto de viver em termos de experiência coletiva. De uma forma ou de outra, a escolha pelo (auto)perdão mostrava-se como o caminho mais seguro para se libertar de um passado, que como podemos acompanhar ao longo do texto, era traumático, mesmo que o narrador, pela via do lirismo, matizasse o ressentimento. Ademais, era uma aposta no futuro, de que algo novo poderia lhe acudir em forma surpresa, movimentando, por fim, o seu devir.

Referências:

Costa, M. A da, Andrade, M. B. S, de(2018). “O Leve Pedro” e a dualidade do amor conjugal. Signótica,Goiânia, vol. 30, n. 1, pp. 137-148.

Freire Costa, J (1998). Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico. Rio de Janeiro: Rocco.

Platão (2003). O banquete. Rio deJaneiro: Difel, 2003.Ricoeur. P (2007). A memória, ahistória, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp.

Simmel, G (2001). Filosofia do amor.São Paulo: Martins Fontes, 2001.