Não há sequer dentro (Leomir Hilário)

Um ensaio sobre a experiência subjetiva do racismo

Leomir Hilário (Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal deSergipe. Doutor em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

 

"É sobre negros cuidando dos seus assuntos – assuntos dos epara os negros. A questão é realmente muito simples: se não o fizermos, enfrentaremos uma contínua sujeição a uma sociedade branca que não tem a intenção de desistir voluntária ou facilmente de sua posição de primazia e autoridade. Se formos bem-sucedidos, exerceremos controle sobre nossas vidas, politicamente, economicamente e psiquicamente"

(Ture; Hamilton, 1967/2021, p. 17)

I

O grau zero da experiência subjetiva do racismo é a vivência da deportação dos africanos para as Américas, marcada pelo desconhecido, enfrentado sem preparo, um destino hostil do qual não se pode fugir. Ao ser jogado no interior da barca, o negro é atirado num mundo estranho, onde seus laços familiares e culturais foram despedaçados. Por isso, a definição mais precisa de escravo é a de estrangeiro, da existência emterritório outro. Ao não pertencer a uma comunidade, sem existência social além de seu senhor, o escravo era uma “pessoa socialmente morta” (Patterson). Essa morte social foi um dos grandes eduradouros legados da escravidão. Tivemos que esperar até o século XX para que o negro começasse o processo de desalienação de si mesmo, ou seja, de produzir conhecimento a partir da sua própria condição existencial de outsider interno da modernidade.

Se, para os europeus, nesse momento inicial a raça se estabeleceu como indicativo hierárquico da vida humana, determinando quais vidas eram descartáveis e quais corpos poderiam ser transformados em mercadorias, para os corpos acorrentados, a raça emergiu como sentença de morte mas também enquanto “linguagem de solidariedade” (S. Hartman) produzida no encontro daqueles que perderam tudo, não tendo mais nada senão a si mesmos. Aquilo que Toni Morrison chamou de Literature of Belonging (literatura depertencimento) é a figura contemporânea dessa linguagem, uma invenção estética que instaura um lugar de reconhecimento para o negro. Um lugar singular, atravessado por uma ciência recalcada e esquecida. Uma espécie de espelho onde o negro pode ver a si mesmo, a partir de si mesmo, por meio do contato com um outro que se lhe assemelha.

Desde aquele momento fundamental do navio negreiro, a produção de saberes da modernidade visou hegemonicamente reproduzir o racismo. O valor da “literatura de pertencimento” é o de produzir essa experiência cultural e estética para o negro do final do século XX e início do século XXI. E ela o faz naquilo que restou negligenciado por todos esses séculos, a experiência subjetiva do racismo, no sentido de que ela é capaz de produzir um olhar sensível a essa matéria escondida e subteorizada. Ou seja, como uma linguagem da solidariedade, a literatura do pertencimento auxilia onegro a elaborar seus afetos.

Por vezes, essa literatura não é bem uma literatura somente, mas se expressa nas artes, em fotografias, em música, em cinema etc. A expressão “literatura de pertencimento” é apenas o nome desse fenômeno difuso, de certa forma crescente entre nós, brasileiros. Esse fenômeno tem como núcleo isso que se chama “experiência subjetiva do racismo” e a sua elaboração a partir daquele que sofre. Mesmo sem ter certeza de como o nomear, optei por essa forma que se chama “ensaio”, pois ela é a maneira pela qual a literatura do pertencimento se expressa, o modo como ela elabora vivências, problematiza emoções, abrindo assim mão de certezas absolutas e conclusões definitivas para, em seu lugar, abrir o horizonte para aqueles que entram em contato. Sempre são escritos ou produzidos na perspectiva da primeira pessoa e recusam a universalidade do racismo por meio da singularidade daquele que sofre. O que tento, aqui, remetendo à contribuição de Jean Starobinski (2018), é tirar o melhor proveito das disciplinas científicas (em especial a psicologia, daquilo que de melhor ela tem a oferecer) e promover o encontro delas com a experiência estética (principalmente, mas não somente, a literatura) para chegar à reflexão dessa matéria-prima que constitui a vivência do racismo.

II

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Eu não lembro o rosto de meu pai é uma série do artista DouglasFerreiro que expõe questões concernentes à paternidade e à masculinidade negra. O jogo incômodo entre sombra e presença, ou de uma sombra que constitui ela
mesma a imagem do corpo outrora presente porém cuja memória está obstaculizada pela falta de singularidade, expressa bem a existência negra. Do ponto de vista das práticas racistas, como bem lembrou Grada Kilomba, o sujeito negro é uma tela de projeção daquilo que o sujeito branco teme reconhecer sobre si mesmo: o ladrão violento, o bandido, o indolente e o malicioso. Tais aspectos desonrosos, cuja intensidade causa extrema ansiedade, culpa e vergonha, são projetados para o exterior como um meio de escapar dos mesmos. Assim, psicanaliticamente, a branquitude, a parte boa do ego, permanece intacta e positiva, enquanto manifestações da parte má são projetadas ao exterior, no negro.

Do ponto de vista da experiência subjetiva do racismo, que é o centro desse ensaio, o negro enquanto tela de projeção tem outro significado e outros impactos psíquicos. A raça, então, pode ser compreendida como um recipiente socialmente construído através do qual projetamos nosso mundo interior nos outros, isso significa que o mundo interior do negro resta desconsiderado e apagado, para ser sobreposto pelas projeções. O negro é, então, aquele a quem é negado a dignidade de existência psíquica singular e por consequência a vivência de um mundo interior. No negro, não há sequer dentro.        

Como seu costumeiro poder de síntese aliada a profundidade, Franz Fanon disse que “aquilo que é chamado de alma negra é uma construção do branco”. Isso não pode ser menos brutal: aquilo que é atributo comum do branco – possuir uma “alma” – no negro é somente um construto postiço daquilo que lhe é externo, a saber, o branco. Do ponto de vista das práticas racistas, isso tem efeitos nocivos, destrutivos. Do ponto de vista da experiência subjetiva do racismo, o negro é uma ausência, uma sombra, como nos mostrou Douglas Ferreiro.

Esse ensaio é uma tentativa de aproximação dessa experiência subjetiva apagada, subteorizada. O que significa viver essa vida onde não há espaço para elaboração dos afetos? Quais são os custos psíquicos dessa vida de sombras, sem singularidade? Quais os impactos psíquicos da desumanização das pessoas negras provocada pelo racismo?

Por enquanto, somente nas artes, e na literatura em especial, essa sombra que constitui a experiência negra de si mesmo se presentifica com a dignidade que lhe cabe. No livro Homens pretos (não) choram, Stefano Volp narra a história de Heleno, que, à beira da morte,angustia-se: “Até um manequim é feito dealguma coisa por dentro, pensou. Eco. Vácuo. E eu? De que sou feito? Longe do mundo, o velho quis chorar pelafalta de respostas, mas, além de não saber como fazê-lo, não se lembrava de um único dia em que tivesse chorado”. Ao final do conto, Heleno se automutila com uma faca, e, “perto dos olhos, respingos de sangue escorreram feito lágrimas”. No suicídio, o velho negro pôde chorar, mas não sem que isso lhe custasse a vida. A brutalidade da cena privada de Heleno é a contraface, sempre escondida e subteorizada, do racismo cotidiano. Enquanto, quando temos sorte, os olhos estão voltados para as cenas públicas de racismo, tais cenas privadas restaram esquecidas, não contadas, não pensadas. E, dessa maneira, estranhamente lutamos contra o racismo ao mesmo tempo em que deixamos o seu fundamento – sofrimento subjetivo provocado pelo racismo e seus efeitos deletérios sobre a pessoa racializada – intocado, impensado. A psicologia deve estar à altura desse chamado, desses gritos de dor oriundos dos becos das vivências do negro diante do racismo.

III

Introduzindo o livro de Toni Morrison, A origem dos outros, Ta-Nehisi Coates cita umconjunto de palestras ministradas pela autora sobre “a literatura do pertencimento”. Lembro de ter ficado longos minutos paralisado nessa expressão. Foi a mesma sensação que tive há muitos anos atrás, também lendo o prefácio do livro de Victor Klemperer, chamado LTI –A linguagem do Terceiro Reich, no qual Miriam Bettina Paulina Oelsnermencionava a “literatura de teor testemunhal”, como, por exemplo, os diários de Anne Frank ou os livros de Primo Levi. No entanto, a diferença é que nessa primeira vez eu tive um insight que consistia basicamente em compreender que o passado não se conta, ele apenas se pode testemunhar, sobretudo numa experiência como a do nazismo. Assim, faz todo o sentido falarmos numa “literatura de teor testemunhal”. Mas, e “literatura do pertencimento”? Como se pode “pertencer à literatura”? O que isso pode significar? Que existe “uma literatura que produz pertencimento”? Qual a relação entre literatura e pertencimento?

Durante tais longos minutos, que se transformaram em dias, eu me perguntava por que eu não conseguia entender uma expressão relativamente simples. Qual era o problema, para mim? Assim, fui refazendo um percurso de distanciamento gradual meu da própria literatura, na medida em que minhas titulações acadêmicas progrediam a pleno vapor. Certa feita, decidi solucionar esse distanciamento e me forcei a ler O homem duplicado de José Saramago, porém não obtive êxito. Eu era tomado por uma estranha impaciência ao começar a ler um só parágrafo. Então, num determinado momento, eu me perguntei: será que eu pertencia a essa literatura? Será que minha impaciência não teria como fundo justamente essa ausência do sentimento de pertença?E, sim, embora houvesse problemas parecidos entre mim e Tertuliano Máximo Afonso, o fato é que o mundo dele tinha pouco a ver com o meu.

O que significa pertencer? Numa primeira acepção, pertencer significa propriedade, no sentido que podemosdizer que “o livro pertencia a alguém”. Numa segunda acepção, pertencer significa fazer parte de ou ser parte do domínio, como quandodizemos que os acontecimentos da República de Palmares pertencem à história do Brasil. Numa outra acepção, pertencer significa ser peculiar a ou ser própriode, no sentido de “a imaginação pertence ao ser humano”. Então, levando-seem consideração esses significados, pertencente é aquele que faz parte de alguma coisa. Assim, a literatura do pertencimento seria aquela capaz de tornar o leitor e seus sentimentos parte constitutiva da experiência literária. O que caracteriza a “literatura dopertencimento” é essa produção de uma partilha do sensível a partir da experiência do racismo.

A primeira coisa que devemos estabelecer é que o racismo precede a raça. “A raça é filha do racismo, e não sua mãe” (Coates). O racismo é o conjunto de práticas performativas que fazem a raça emergir como dispositivo de controle dos corpos negros enquanto corpos racializados, que possuem uma “raça”. É nesse sentido que devemos compreender que a raça não é uma substância, uma propriedade ou uma materialidade. Para que a raça exista, são necessárias condições históricas, sociais e econômicas. Portanto, a raça é performativa. Ela é um conjunto de atos reiterativos, repetitivos, que criam a raça e nomeiam/localizam o corpo racializado, o negro. Diferenças de cor de pele e cabelo, por exemplo, são antigas, mas a ideia segundo a qual tais diferenças podem constituir fundamentos para organização mais correta da sociedade, porque elas expressariam hierarquias mais profundas e poderiam inclusive fundamentar mortes e genocídios, é uma invenção moderna.

Por isso, não faz sentido falar de raça antes, por exemplo, do tráfico negreiro. É somente quando o negro entra forçadamente no espaço do branco, a Europa, que a raça se faz presente para diferenciar esse elemento externo, para controlar esse elemento externo, para estudar esse elemento externo, para dominar esse elemento externo. A raça é a forma histórica específica de a modernidade lidar com o outro, sendo que o outro aqui é o negro. Em uma palavra: a raça é uma qualidade da alteridade e não da realidade, de modo que ela não é umaconstatação de um fato realmente existente, mas a irrupção de uma dinâmica relacional situada.

Dizer que a raça é performativa, é também dizer que ela precisa desses atos reiterativos que são, em bom português, os atos racistas, aqueles que nomeiam e localizam o negro. O racismo é o conjunto dessas práticas reiterativas que forma uma tecnologia de poder, porque ele é uma prática de controle social, uma relação de poder. O racismo serve como uma prática disciplinar que enclausura o negro e impõe o horizonte de impossibilidade para a subjetividade e os corpos negros.

O racismo é uma condição inultrapassável e ao mesmo tempo cotidiana da experiência vivida do negro. O negro é constantemente interpelado a ter/ser uma raça – o preto – e, ao mesmo tempo, sente que ter/ser uma raça é o efeito da prática de racismo. Ele está assim aprisionado num mundo branco, sua inferioridade está epidermizada. Essa “outridade” (Kilomba) é a condição na qual o negro se torna a representação mental daquilo que o sujeito branco não quer se parecer, daquilo que ele quer expulsar de si mesmo. Outridade é a dinâmica na qual se é colocado sempre como outro e nunca como um “eu”. Ela constituiu a marca do psiquismo do negro. A literatura do pertencimento, ao pôr no centro da cena a experiência do racismo, faz com que subjetividades negras se sintam pertencentes às narrativas que exploram as vivências que envolvem raça e subjetividade.

IV

Porque a literatura assumiria essa “forma do pertencimento”? A quais problemas ela se refere e procura resolver? Parece óbvio que deveria ser a ciência aquela a tomar para si a condição trágica do racismo, visando sua superação, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo. Porém, ela seguiu caminho contrário. Podemos narrar a história do encontro da psicologia com o racismo de maneira resumida. Em primeiro lugar, há uma formação de compromisso entre psicologia e eugenismo, com a psicologia se somando ao “racismo científico”. No período que vai de 1860 a 1910, mais ou menos, a psicologia participa desse projeto que lia a “raça” como algo associado a atributos biológicos e culturais. Denegando o caráter de invenção da raça e da montagem histórica de um dispositivo disciplinar de controle, a psicologia participou ativamente do nascimento e consolidação da ideologia racista. A psicologia contribuiu para a produção de uma “raciologia”, ou seja, junto com as ciências humanas, como antropologia e filosofia, ela empreende um trabalho elaborado para tornar a ideia de raça epistemologicamente correta. Nomes de destaque em tal processo foram: Francis Galton, Herbert Spencer, Granville Stanley Hall, Gustave Le Bon e William Isaac Thomas. O legado que eles deixaram para a psicologia foi o de que, como disse certa vez Robert Guthrie, “Até o rato era branco”.

Nos livros de História da Psicologia adotados na graduação, alguns desses nomes ainda figuram com relativa seriedade e glória. Galton, por exemplo, aparece como alguém “dotado de extraordinária inteligência e riqueza de ideias originais”. Spencer retratado como “um dos escritores mais prolíficos do século XIX”. Meus alunos ainda se chocam quando eu afirmo que a psicologia é racista inclusive no modo de contar a sua própria história. Mas qual o nome se pode dar a esse ato de glorificar um homem que disse: “os erros que os negros cometiam em seus próprios assuntos eram tão infantis, estúpidos e simplórios, que frequentemente me deixavam envergonhado de minha própria espécie”. Isso escrito e publicado num livro cujo título é Hereditary Genius! Porém, na verdade isso quedeveria nos chocar, a psicologia é racista porque não elabora o seu próprio passado eugenista, acreditando ser possível extirpar o racismo e salvar o racista[1]. Nesse primeiro momento, o negro é um objeto de estudo da psicologia, algo a ser escrutinado, examinado, diferenciado, categorizado, tudo isso inevitavelmente no registro do negativo ou da menoridade. Ou seja, produziu-se uma “psicologia racial” (ou “psicologia da raça”, ou, ainda, a forma racista da psicologia), como demonstrou em detalhes Suman Fernando.

Em segundo lugar, com o traumatismo das experiências totalitárias, a psicologia buscou combater o racismo e se colocar como uma ciência democrática, principalmente através da Psicologia Social enquanto “a ciência das atitudes”. Claro, aqui a denegação se repete: foi William Isaac Thomas, que escreveu um artigo chamado A mente da mulher e as raças inferiores, em 1907, onde ele disse que “o mundo da vida intelectual moderna é, na realidade, o mundo do homem branco”, o mesmo que, em 1918, definiu pela primeira vez, ao lado de Florian Znaniecki, a Psicologia Social dessa maneira (Cf. Rose, 2011). Gordon Allport, nas décadas seguintes, estabeleceu um amplo quadro de análise, que entre nós foi amplamente divulgado por Aroldo Rodrigues.

Foi no interior dos Estudos sobre Influência Social que essa psicologia encontrou seu momento mais progressista. Nas pesquisas de Stanley Milgram e Philip Zimbardo, as estruturas autoritárias foram analisadas de maneira empírica. Seus
ganhos analíticos são inegáveis. No entanto, no terreno do racismo, o déficitpermaneceu inalterado. A psicologia social norte-americana cometeu dois erros: o primeiro foi o de compreender a si mesma como algo alheio aos processos racistas, como se ela pudesse, desde fora, compreender e transformar o racismo; o segundo foi decompor o racismo em preconceitos, estereótipos e discriminação, e, dessa maneira, nunca falar de racismo diretamente. Como se o racismo fosse um evento complexo, sutil, escondido.

A pergunta a ser feita é: qual experiência subjetiva de base para essa concepção complexa e sutil de racismo, que deve desmembrar o fenômeno em eufemismos? A resposta é: a experiência branca. É somente experimentando o racismo como um branco que é possível considerar que se está numa posição relativamente de fora e neutra, ou que se pode compreender o racismo de maneira complexa, sutil. A branquitude foi o lugar da psicologia mesmo quando ela se quis democrática e lutar contra o racismo, por conta da manutenção do ponto de vista branco acerca do racismo. E como isso aparece? Ali onde ela fundamentalmente comunga com o seu passado imediato: a negação da agência do negro, sobretudo quando o assunto é racismo. A psicologia democrática deixa a porta fechada na cara do negro. Não sabemos o que pensa o negro psicologicamente, como ele se sente e quais os efeitos psíquicos do racismo. Assim, não deve parecer contraditório ou falho que livros como Psicologia Social: Temas e Teorias, Psicologia Social: Principais Temas e Vertentes ou o clássico Psicologia Social de Jorge Vala, não tenham um só capítulo sobre racismo. Se num primeiro momento a psicologia quis salvar os racistas denegando o racismo deles, no segundo momento ela quis lutar contra o racismo mas salvaguardando sua branquitude. Ela sofreu, em ambos os casos, aquilo que se pode denominar de “daltonismo racial” (K.-Y Taylor).

A ciência, notadamente as ciências psicológicas, não foi capaz de produzir algum entendimento minimamente razoável sobre a experiência do racismo. Ela foi, para usar uma expressão de Martin Luther King Jr., uma “psicologia da servidão”, ou seja, um dispositivo que operou no sentido de manter a escravidão na mente do negro. É na ruptura disso que a literatura do pertencimento emerge. Ela visa produzir um tipo de compreensão sobre a experiência vivida do racismo: seus dilemas, conflitos, repetições, ausências, falhas, amores, dissabores, angústias etc. Mas a literatura não faz isso a partir de si mesma , ela esteve atenta aos silenciados da própria ciência, como Franz Fanon.

Para Fanon, o racismo implica uma necessidade, por partes dos corpos negros, de um uso da máscara branca. Ou seja, sua tese é a de que a civilização branca e a cultura europeia impuseram ao negro um “desvio existencial”. O seu projeto foi o de desalienar o negro de si mesmo,ou seja, de um processo de desconstrução da perspectiva branca sore o negro e do processo de produção de um conhecimento a partir da experiência vivida do negro. Fanon inaugurou o campo das relações entre subjetividade e racismo, abrindo caminho para uma psicologia antirracista.

Essa psicologia antirracista deveria ser capaz de compreender a matriz social do complexo de inferioridade do negro que vive num mundo branco. Essa psicologia, então, teria a necessidade de uma ação combinada junto ao indivíduo e ao grupo:

“Como psicanalista, devo ajudar meu cliente a conscientizar seu inconsciente, a não mais buscar uma lactificação alucinatória, mas a agir no sentido da mudança das estruturas sociais” (Fanon, 2020, p. 114).

Essa clínica fanoniana seria uma “prática insurgente dades alienação”, como disse Paul Gilroy.

Apesar do brilhantismo da proposta de Fanon, essa prática foi esquecida. Ele tocou no tabu profundo da história da psicologia, da agência do negro sobre seu sofrimento. Ao fazer isso, ele mostrou como, a partir da experiência vivida do negro, a cor aparece como uma irrupção traumática cotidiana, de modo que o negro não sabe que é negro, até ser interpelado como tal de uma vez para sempre. “Descobri minha negrura”, diz Fanon, mostrando como ser negro é parte de uma descoberta pessoal traumática porque ela vem do outro e não pode ser negada ou escondida. Assim, da perspectiva do negro, o racismo não é complexo, sutil ou pode ser desmembrado em outros termos eufemistas. O racismo é real, cotidiano, traumático, violento. Contra isso, Fanon recusava qualquer “tetanização afetiva”. Ele “queria ser humano, nada além de humano”. Essa luta entre a posição em que se é posto – a de negro, de preto, de subalterno, de sujo – e a posição que se almeja – ora de ser branco como eles ora de ter uma existência singular – é a luta travada pelo negro no interior dos processos racistas. Isso nunca foi tematizado pela psicologia.

Fanon teve a sua dimensão radical de análise da experiência subjetiva do racismo subvalorizada em relação aos seus escritos enquanto um revolucionário, por isso, Os Condenados da Terra, livro de 1961, aparece como sua obra-prima ou mais importante.

É como se a dimensão política do pensamento de Fanon fosse separada e apartada da dimensão clínica de seu pensamento. Porém, aqui incorremos num erro, porque a clínica é o que fundamenta a política revolucionária de Fanon (isso inclusive cronologicamente, foi a clínica que empurrou Fanon à política) e, vice-versa, não há política revolucionária em Fanon sem o entendimento de sua leitura clínica (ou seja, as transformações necessárias da subjetividade do colonizado apenas seriam exitosas no quadro mais amplo de uma revolução).

Essa cisão não é só da leitura de Fanon, talvez seja uma cisão mesma no interior da luta antirracista: quase nunca paramos para nos questionar acerca da condição subjetiva dos negros e estamos sempre preocupados que esses negros sejam sujeitos ativos da luta antirracista. Mas é bom lembrar que mesmo Os Condenados da Terra terminam com um capítulo sobre Guerra colonial e distúrbios mentais. Fanon nunca abandonou a perspectiva clínica. É curiosoque, no início desse capítulo final, ele tenha dito: “Talvez se julguem inoportunas e singularmente deslocadas neste livro estas notas de psiquiatria. Mas nada podemos fazer”. É como se Fanon entendesse que a investigação sobre os modos de sofrimento psíquico – na sua gramática: “o problema dos distúrbios mentais originados na guerra de libertação nacional travada pelo povo argelino” – é um momento fundamental de processos revolucionários. Mas, como se também soubesse que não entenderiam isso, que seus futuros leitores ainda manteriam uma dissociação entre clínica e política.

Na ausência da ciência em lidar com o sofrimento do negro a partir da perspectiva do próprio negro, foi a literatura do pertencimento que tomou para si tal tarefa e ela o fez retomando intelectuais e obras esquecidas pela própria ciência.

 

V


A branquitude é um pacto social,onde os brancos conseguem manter seus privilégios, ainda que esses tenham sido conquistados com assassinatos e violações de seus antepassados. Uma boa forma de entender o que é o pacto da branquitude, é lembrar que, antes mesmo de pensarmos numa cota para negros, sempre houve uma cota para brancos, por isso tantos professores, médicos, juízes etc. são brancos. Não é porque é natural que sejam brancos, não é porque são mais inteligentes ou mais capazes, é porque existe um caminho de ascensão social que é praticamente uma exclusividade dos brancos devido ao legado histórico da violência cometida pelos brancos aos povos negros e indígenas desse país.

A branquitude também aparece na forma pela qual a estética é dominada pelos brancos, de forma que, por exemplo, o cabelo negro é sujo, feio. E obriga o negro a se embranquecer, essa é a força da branquitude. Ela é perversa porque sufoca a alteridade, nega a diversidade e funciona como uma ditadura da beleza e da forma correta e melhor de se viver a vida.

A necropolítica é o segundo braço do racismo a nível macro. Ela aparece como um traço fundante da sociedade brasileira contemporânea. O acontecimento inaugural dessa necropolítica foi o massacre que selou o fim da “República dos Palmares” (1630-1697). Com 65 anos de duração, cerca de 1.500 casas, com uma economia viva e plural (banana, mandioca, feijão etc.). Resistiu a mais de 25 expedições militares. Mas foi ao cabo derrotada com sangue. Não foi assimilada, não foi integrada, seus ganhos não foram inseridos no projeto chamado Brasil. Pelo contrário, preferiu-se a morte daqueles negros e foi a partir desse sangue negro que foi se constituindo o que viria a ser a nacionalidade brasileira. Na modernidade tardia, a necropolítica passou a atuar como uma tecnologia para regular essas populações excedentes composta por pessoas que já não estão mais no horizonte do emprego e do direito, pessoas que são reguladas pela violência policial ou do narcotráfico.

O segundo nível do racismo é o micro, ou, o nível das práticas e dos encontros sociais entre grupos e pessoas mais localizados. Esse nível pode ser dividido em dois: a discriminação e o preconceito racial. A discriminação é o racismo em
ato: xingamento, exclusão, ação violenta, produzida por um ou mais indivíduos contra outro indivíduo ou um grupo de negros. O preconceito é uma representação social que gera ações veladas por parte de um autor não identificado que gera desconforto ou exclusão do negro.

Há, ainda, e talvez mais importante, um terceiro nível, o nível subjetivo ou psicológico, que pode ser definido como uma dimensão onde se pode ver os impactos mais profundos do racismo, aqueles que resistem a qualquer tipo de racionalização política. Esse terceiro nível se refere ao psiquismo, aos modos pelos quais o racismo se inscreve na subjetividade do negro enquanto uma experiência de sofrimento.

Tomemos aqui um texto da Beatriz Nascimento chamado Meu negro interno, publicado num jornal de Nova Iorque, em 1974, no qual elanarra alguns episódios de racismo cotidiano que ela sofreu e o faz a partir de uma perspectiva subjetiva. Em determinado momento, Beatriz comenta que ela foi educada e ascendeu socialmente não para ser negra, mas para se igualar ao branco, para que o branco a aceitasse. Ela conta que estava num mercado, ao lado de uma mulher branca, fazendo suas compras semanais. Ao pegar seus alimentos da mão do vendedor, ele acrescenta: “Maria, não esqueça a nota fiscal para não ter problemas com a patroa” e estendeu a mão com a nota fiscal. Após isso, Beatriz se trancou o resto do dia em casa.

Essa expressão – “negro interno” – a meu ver foi a maneira que Beatriz encontrou de trazer a discussão do racismo para a experiência subjetiva, para os impactos profundos que os atos racistas deixam em cada negro e em cada negra. Isso é
importante porque se trata de uma grande intelectual negra, orgânica do movimento negro, e mesmo assim expõe como, apesar de tudo isso, ela teve que lidar sozinha trancada em seu apartamento com os impactos psicológicos do racismo.

Tomemos, agora, o Tornar-se Negro de NeusaSantos Souza, de 1983. A hipótese fundamental de Neusa é a de que ninguém nasce negro, mas se torna negro. E esse processo de tornar-se negro é necessariamente traumático e algo nunca acabado. É um processo imposto pelo outro que me define desde fora. De modo que é o outro que produz esse lugar negativo a partir do qual eu me tornarei um negro, mas não me tornarei quem eu sou. Ou seja, para Neusa, ser negro é ser violentado constantemente, sem pausa e sem repouso, e de uma dupla forma: por um lado, a exigência de encarnar o corpo e os ideais do sujeito branco, por outro lado, de recusar, negar e anular a presença do corpo negro. No entanto, aqui está a condição de sofrimento do negro: quando o negro formula para si um projeto de ser branco, isso é incompatível com as propriedades biológicas de seu corpo.

Então, Neusa colocou no centro da reflexão o que podemos chamar de experiência emocional do negro, marcadapela obrigação de tomar o branco como modelo de identidade e assim levar a cabo a estratégia de ascensão social como uma maneira de viver uma vida com menos sofrimento. No entanto, diz ela, isso tem duas impossibilidades: a primeira é que mesmo quando consegue a ascensão social desejada, o negro não deixa de ser negro, pelo contrário, ele será sempre posicionado como um negro e interpelado como um negro. Por exemplo: Beatriz Nascimento conta em seu texto que, quando foi visitar uma amiga sua num apartamento, o porteiro olhou para ela e disse: “a entrada de serviço é por ali, crioula”. E, ao fingir que não ouviu, o porteiro repetiu. Beatriz ergueu o nariz e argumentou que foi visitar sua amiga, ao que o porteiro retrucou: “eu não sou mágico, não tinha como adivinhar”. E ela deve conviver com esse mal-estar sozinha, isolada. Essa é a primeira impossibilidade: nenhuma ascensão social será capaz de proteger o negro das interpelações racistas cotidianas. Seu projeto de viver uma vida melhor é de antemão já fracassado, porém desistir não é uma opção.

A segunda impossibilidade é que, mesmo ao conseguir a ascensão social desejada e lutada, ele será corroído por dentro por aquilo que a Neusa chama de “dramática insatisfação”. Essa “dramática insatisfação” pode ser definida como uma sensação de defasagem entre o negro e o lugar que ele ocupa, como se ele nunca fosse devidamente capaz de estar ali onde está, como se ele tivesse que provar, para si mesmo e para os outros, a cada momento de atuação, que, sim, ele é capaz, ele é merecedor. O custo mental disso é gigantesco.

Tomemos, por fim, o livro Quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus, de 1955. Trata-se aqui de uma escrevivência de uma mulher negra, seu ofício de catadora de latinhas e seu lugar que é a favela. O que temos ali é a produção de quem vive na favela sobre o que é viver na favela. Nesse sentido, a pobreza não é um objeto de estudo de um saber externo, mas o lugar a partir do qual emerge uma outra narrativa possível. Nesse sentido, é uma literatura produzida por uma negra, a partir da vivência da raça e da pobreza. É uma maneira de travar a luta contra a miséria e contra o racismo a partir da subjetividade dessa experiência. Há um momento, em 19 de julho de 1955, em que ela, no meio de uma discussão onde invadem o seu barraco, ela diz: “Vou escrever um livro sobre a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro e vocês com essas cenas desagradáveis me fornecem os argumentos”.

Ou seja, a luta contra a violência interna da favela é travada por meio de uma elaboração subjetiva que se dá através da forma literária. Esse tipo de gesto me é fundamental, o gesto que coloca no centro da cena a experiência subjetiva do racismo. Eu penso que Fanon, Neusa, Carolina e Beatriz estão dentro dessa perspectiva que pensa o racismo tendo como foco central a experiência subjetiva de sofrimento. Essa perspectiva foi negligenciada tanto pelo campo da ciência quanto deixada de lado pelo Movimento Negro, que a tratou como um problema individual diante do qual o negro deve lamber suas feridas sozinho.

Com isso, não quero transformar o racismo num problema psicológico ou individual, mas quero chamar atenção para esse suplemento necessário a toda cena racista, ou seja, o elemento pessoal do sofrimento daquele que é alvo do racismo. E uma das artimanhas do racismo sempre foi a de negar esse sofrimento, de negar a fala desse que sofre o racismo, de considerá-la muito pesada, ou ressentida. Entendemos que a aposta ético-política é a de que a elaboração coletiva desse sofrimento constituiria a nossa saída. Mas aqui também há um custo mental que é preciso dimensionar e que sempre fica como um resto de toda luta política antirracista.

Com isso, não quero transformar o racismo num problema psicológico ou individual, mas quero chamar atenção para esse suplemento necessário a toda cena racista, ou seja, o elemento pessoal do sofrimento daquele que é alvo do racismo. E uma das artimanhas do racismo sempre foi a de negar esse sofrimento, de negar a fala desse que sofre o racismo, de considerá-la muito pesada, ou ressentida. Entendemos que a aposta ético-política é a de que a elaboração coletiva desse sofrimento constituiria a nossa saída. Mas aqui também há um custo mental que é preciso dimensionar e que sempre fica como um resto de toda luta política antirracista.

Lembrem-se aqui do caso de Seu Jorge, que sofreu ataques racistas num show em Porto Alegre, em outubro de 2022. Seu Jorge, um artista consagrado, extremamente competente, ator, cantor, compositor, etc., sofreu um racismo dos mais baixos possíveis. Dois dias depois, gravou um vídeo onde fez um discurso coerente e convincente contra o racismo. Um discurso de mais de cinco minutos. O meu ponto é: vejam como o negro é forçado, mesmo sob ataque racista, a sublimar seu sofrimento na forma de um conteúdo socialmente útil, politicamente organizado e propositivo. É como se o negro, alvo de racismo, não pudesse sucumbir ao seu sofrimento. Ele deve ser mais, deve ser melhor, deve ser exemplo, deve ser farol de esperança de todos, deve ser esperança inclusive para os brancos. O que eu gostaria de demarcar aqui é que mesmo esse evento mais nobre ainda é uma continuidade da cena racista, no interior da qual o negro ainda está enredado e ainda está em sofrimento psíquico.

É uma situação que impede o aparecimento e dimensionamento do sofrimento psíquico do próprio negro na cena racista. A sua liberdade de agir de acordo com o seu sentimento é podada: na colônia ele deve se curvar concretamente ao tronco e à chibata, para se endireitar, se civilizar; na modernidade ele deve se curvar concretamente aos bons modos, mesmo depois de ser humilhado, deve voltar triunfante, maduro, racional, calmo e propositivo. Se tomarmos como critério o sofrimento implicado na cena racista, o negro não avançou nada, porque seu sofrimento continua silenciado, escondido, quebrado dentro de si mesmo. É o sofrimento psíquico da cena racista que constitui um de nossos tabus ainda hoje. Não estamos preparados para isso, nem enquanto negros nem enquanto sociedade.

Vou dar um outro exemplo, ocorrido em novembro de 2022, no Rio de Janeiro. Uma mulher negra, chamada Awdrey Ribeiro, ao se dirigir ao trocador de uma loja Renner, foi acusada de furtar um casaco. Ao perceber a situação, ficou indignada e alguém filmou toda a situação. A segurança da loja tomou sua bolsa e verificou que a única coisa que havia de suspeita era um casaco de uma marca que não é vendida pela Renner. A segurança se desculpou posteriormente, mas o estrago já estava feito. No vídeo, vocês podem conferir Awdrey exaltada, falando alto, se defendendo, como deve ser.

Porém, no dia seguinte, ela se deu conta de que seu corpo estava tomado por feridas. Pois ela sofre de psoríase, uma doença autoimune que provoca feridas na pele. Em situações de alto stress, as feridas se multiplicam. O que eu quero dizer é que essas feridas são os efeitos do racismo no corpo de Awdrey. Esses efeitos, esses impactos, resistem a qualquer tipo de mobilização política que ela poderia efetuar. Esses efeitos definem o que é o sofrimento emocional do negro provocado pelo racismo. Um sofrimento que ainda espera de nós algum tipo de elaboração e de transformação, sob pena de sermos ainda continuamente marcados, desfigurados, transfigurados.

Precisamos refletir sobre essa estrutura de sentimento que vem amarrada à ação racista. Ou seja, o ato racista instaura um labirinto afetivo, que o negro deve se haver mesmo após o ato racista ter acabado na prática. O negro não sabe o que fazer com tais afetos e esses afetos borbulham e persistem, mesmo depois de uma mobilização política.

VI

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Em 1964, Martin Luther King Jr. foi até o hotel Monson, situado em Saint Augustine, Flórida, onde a presença de negros não era autorizada. Por conta dessa atitude, ele foi preso. Na mesma semana, um grupo de ativistas negros e brancos mergulhou na piscina. Irado, James Brock, então gerente do hotel, pegou uma garrafa de ácido e começou a jogar na água. Em 2019, Antônio Obá pintou uma série de quadros a que denominou de Banhistas. Há um quadro em especial onde se vê um banhista negro prestes a entrar na água. A piscina fica no interior de uma casa, estranhamente, a sensação é de que algo está prestes a acontecer, uma tocaia.

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“Na imagem, vemos um homem negro, num trampolim, concentrado, como se estivesse numa prece, preparando o corpo para um mergulho em uma piscina interna. Dentro de uma casa, compondo uma atmosfera mais intimista, particular. Talvez a metáfora da jornada de Henrique e Pedro ao buscarem suas subjetividades. Um mergulho para além da cor da pele. Uma luta para preservar seus afetos. Um trampolim em busca do avesso” (Jeferson Tenório).

Essa transformação da piscina pública americana para uma piscina situada no interior de uma casa me parece fundamental para compreendermos a experiência subjetiva do racismo. É essa obra, aliás, que, não por acaso, consta na capa do livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório. Nas palavras dele: Tivemos que esperar para que a literatura assumisse as rédeas do processo de elaboração dessa experiência subjetiva do racismo e ela o fez de maneira magistral. Não acredito que seja exagerado dizer que é essa experiência, narrada a partir de episódios de racismo cotidiano, que constitui o núcleo desse livro. Porque se trata, no nível mais visível, de uma reconstituição da vida do pai (Henrique) através das memórias do filho (Pedro), que ele vai recuperando mas também inventando. Porque a memória negra é sempre em retalhos e existe uma reconstrução ativa, uma escrevivência, uma oralidade, uma oralitura. Afinal de contas, o que sabemos sobre aqueles que vieramsequestrados de sua terra natal para cá? Como eles se sentiam? Como eles lidavam com a separação abrupta de sua família? Quais os impactos subjetivos dessa viagem transatlântica brutal? Não sabemos, não podemos saber, mas sentimos, não podemos deixar de sentir. É nesse vácuo entre a impossibilidade da memória e a exigência da partilha do sensível ancestral que existimos enquanto negros. Portanto, ao narrar a história de seu pai de maneira fragmentária, Pedro também acaba por narrar a sua história enquanto negro, o seu processo de tornar-se negro. Isso aparece no interior da economia textual da seguinte maneira: as vozes se alternam, quando aparece a primeira pessoa, o leitor acessa a vida de Pedro; quando aparece a segunda pessoa, o leitor tem acesso ao pai; já em terceira pessoa, conta-se a história da mãe.

Ao narrar essa história, Jeferson Tenório mostra como existe uma infinita diversidade das pessoas negras e dos modos pelos quais elas se relacionam e resistem ao racismo. A colocação em cena dessa constelaçãoplural da raça é de um avanço impressionante. Porque, por exemplo, se aindanão deixamos o negro falar no interior da psicologia, estamos ainda muito distantes de entrar em contato com essa constelação plural.

No capítulo 3, Jeferson Tenório narra a dinâmica do casal negro:

“A verdade é que vocês não se amavam o suficiente para suportarem seus fantasmas. Vocês eram apenas duas pessoas quebradas. Cada um com seus cacos. Cada um buscando uma escora. O amor como muleta. (...) Laceraram um ao outro porque, a certa altura da vida, as pessoas perdem a capacidade de amar” (Jeferson Tenório).

Esse tipo de narrativa expressa bem como os impactos do racismo também se fazem presentes na dinâmica privada amorosa do negro. Aquela frase de Fanon de que o negro não tem alma aparece aqui como a impossibilidade de elevar o amor ao status de um “santuário existencial” que promove segurança, estabilidade e conforto emocional. Amor, para os negros, não parece ter essa característica de refúgio.

Talvez seja por isso que, na cena da terapia de casal, Henrique reclame que os terapeutas não conheciam o “tumulto vital”, porque eles eram brancos e vieram de classe média, a psicanálise tinha cor e era branca e “definitivamente havia coisas que escapavam a Freud”, ou, melhor, “Freud nos escapa”. Põe-se os limites da psicanálise, de como a branquitude que lhe é constitutiva a impede de acessar a experiência subjetiva do negro, o “tumulto vital”. É um modo de pôr em literatura no século XXI no Brasil aquele capítulo de Fanon chamado O negro e a psicopatologia. O que estáem jogo aqui não é que um psicanalista branco não pode atender um negro ou um casal de negros, mas que, para isso, é necessário um conjunto de leituras e entendimento. Trata-se, então, não de uma busca de nicho mercado para psicólogos, mas sim de um convite à transformação da psicologia e de seus modos de fazer a clínica.

Uma maneira psicológica e crítica de compreender o “tumulto vital” é um tipo de condição de sofrimento inelutável e permanente que causa desconforto psíquico constante naquele que sofre. A dificuldade de as abordagens psicológicas
enfrentarem o “tumulto vital” é que elas precisariam abrir mão da centralidade da ideia de cura e colocarem a si mesmas como agentes no processo da luta antirracista, ou seja, inserir um conteúdo político em suas práticas. Isso coloca uma outra dimensão dessa luta, uma dimensão mais afetiva, subjetiva, emocional. E poria a psicologia como agente de resistência nesse âmbito. Porém, as feridas narcísicas oriundas de tal processo são profundas, porque a psicologia teria que abrir mão de seu protagonismo na mudança da condição existencial para o melhor por meio da cura, assim como se defrontar com uma situação na qual ela não tem muito o que fazer, senão participar lado a lado de
um processo que lhe escapa. Estaria a psicologia disposta a “chafurdar num problema que não tem solução” (Wilderson III), ou seja, explorar problemas para os quais não existe saída no horizonte?

Novamente, a arte soube, como ninguém, tematizar isso, sem recuar, sem ceder à experiência subjetiva do racismo, sem lhe propor uma saída. Em Two Distant Strangers, curta vencedor do Oscar em 2020, dirigidopor Travon Free, um jovem negro, Carter, acorda na casa de uma mulher, Perri, depois de uma noite de amor. Ele precisa voltar cedo para cuidar de seu cachorro, ao som de The Way It Is (algo como, “é assim mesmo” ou “é desse jeito que são as coisas”), de Bruce Hornsby ele se esbarra com um policial branco que o aborda violentamente apertando seu pescoço, fazendo com que ele repita a frase “I can’t breathe” (“eu não consigo respirar”), dita por George Floyd, em maio 2020. O jovem morre e acorda, novamente, no apartamento de Perri. De uma maneira ou de outra, a abordagem policial se repete e ele acaba sendo assassinado e se vê num looping temporal. A cada nova vez, eletenta de tudo evitar o destino fatal. Sempre em vão. E é assim que é. Não há saída. Dali em diante, todas as vezes ele será abordado e assassinado pelo mesmo policial branco. Ele sempre acordará com a certeza de que será assassinado a qualquer momento pelo policial branco e deve viver apesar disso.

O “avesso da pele” aparece como a maneira pela qual o negro procura constituir a si mesmo enquanto uma subjetividade, tecer a sua interioridade, o seu psiquismo. Por isso é necessário preservar o avesso:

“Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos”.

Dessa maneira, o avesso da pele pode serentendido como um processo, sempre singular e individual, a partir do qual o negro produz um “para si”, uma consciência e um espaço onde lhe seja possível elaborar seus afetos, sentimentos, emoções, conflitos, frustrações, ansiedades etc.

Essas duas noções – avesso da pele e tumulto vital – podem ser lidas através das lentes do afropessimismo, já que essa perspectiva põe no centro da cena o sofrimento negro como algo inescapável para o qual ainda não temos uma solução. Nesse sentido, o antagonismo fundamental do negro é entre ele e o mundo, de modo que as outras maneiras de ler os antagonismos sociais não lhe são suficientes. O mundo é antinegro, demodo que a negritude é uma morte social,que se dá no interior de uma relação com o outro, a outridade, como vimos. A radicalidade do afropessimismo é entenderque há uma especificidade nosofrimento negro, de modo que ele não pode ser colocado lado a lado com outros seres oprimidos. Esse movimento, de deslocamento da condição objetiva do negro, é exatamente o que caracteriza a negritude:o estatuto de não-sujeito. É isso que promove a possibilidade do deslocamento, de transformar o negro em suportes intertes, ferramentas para a execução das fantasias e dos prazeres dos outros. O deslocamento da condição objetiva do negro, por mais bem intencionada que pareça, é uma outra maneira de instrumentalizar a nossa carne e energia em favor de outras agendas. É nesse sentido que “os negros corporificam uma meta-aporia do pensamento e da ação política” (Wilderson III).

Se algum dia estivermos preparados para focalizar a experiência subjetiva do racismo, talvez também estejamos próximos de compreender essa especificidade do negro, de colocar a antinegritudecomo característica fundamental e organizadora das nossas formas sociais. Quem melhor explanou isso foi Muhammad Ali, numa entrevista à BBC, em 1971:

“Eu sempre perguntava: Mãe, como tudo pode ser branco? Por que Jesus é branco, com cabelo loiro e olhos azuis? Os anjos são brancos, o papa, Maria e mesmo os anjos. Eu perguntava: Mãe, quando morremos, vamos para o Céu? E ela dizia: Certamente, vamos para o céu. E eu: Bom, o que aconteceu com todos as fotos dos anjos negros? (...) E tudo que era ruim era preto. O Patinho Feio era o pato preto, o gato preto dá má sorte. E se eu te ameaçar, vou chantagear (blackmail) você”.

Ao menos na história crítica do pensamento, esse gesto de colocar o racismo no centro da análise social foi realizado, principalmente por Cedric Robinson em Marxismo negro, de 1987. Essa obradesloca o centro do pensamento radical e da revolução da Europa para a periferia, aos territórios coloniais, expondo os limites do marxismo como forma de entender a experiência negra e mostrando as raízes do racismo ocidental como algo que constitui a civilização europeia desde antes da emergência do capitalismo. A isso ele denominou de “capitalismo racial”, recuperando a intuição fundamental de Malcolm X segundo a qual “não pode haver capitalismo sem racismo”, de modo que há uma centralidade do povo africano na criação do mundo moderno. Na parte final de sua obra, Robinson apresenta a “tradição radical negra” a partir de W. E. B. Du Bois, C. L. R. James e Richard Wright, mostrando como cada um deles passou por uma trajetória no interior do marxismo, viram-se afetados pela crise do capitalismo mundial e as lutas anticoloniais, produzindo importantes livros que questionam o marxismo e desse modo consolidaram isso que se denomina “Tradição Radical Negra”. Ele usa uma imagem esclarecedora: não é que eles criaram o radicalismo negro, mas que se encontraram com ele e uniram seus trabalhos teórico-analíticos com essa força histórica dos movimentos de massa das pessoas racializadas.

Além do excelente livro de Robinson, que tem o mérito de propor uma aglutinação na forma de uma tradição radical negra, posso citar também o Capitalismo e Escravidão, de Eric Williams (1942/2012), no qual eledefende a tese de que houve uma contribuição fundamental da escravidão para o desenvolvimento do capitalismo britânico, de modo que o tráfico negreiro forneceu o capital que financiou a Revolução Industrial da Inglaterra. Outra obra clássica é Como a Europa subdesenvolveu a África, de Walter Rodney (1972/2022), onde o subdesenvolvimento não é entendido como uma etapa histórica do desenvolvimento capitalista, na qual cada nação deveria encontrar suas potências endógenas para avançar, mas sim como uma condição periférica de exploração que sustenta o modo de produção global do capitalismo. Assim, o subdesenvolvimento da periferia explica e dá as condições de possibilidade para o desenvolvimento do centro capitalista. Como em Eric Williams, aqui também em Rodney se toma a África, a periferia, como centro explicativo da dinâmica do capitalismo. Ambos poderiam constar facilmente como membros da Tradição Radical Negra mapeada por Cedric Robinson.

VI

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Se a narrativa de Jeferson Tenório é a de um filho em busca da memória de seu pai, a de Ta-Nehisi Coates é a do inverso, de uma conversa franca entre pai e filho, cujo tema central é o de que “como se vive dentro de um corpo negro”. Recuperando o incidente envolvendo Michael Brown, jovem negro de 18 anos baleado por um policial branco na cidade de Ferguson, Saint Louis, estado do Missouri, nos Estados Unidos, em 9 de agosto de 2014, Ta-Nehisi Coates lembra que seu filho esperava ansiosamente a punição dos policiais envolvidos, tendo ficado acordado até cerca de onze horas da noite. No entanto, foi anunciado que não haveria nenhum indiciamento. Ao ouvir isso, o filho foi para o quarto e seu pranto se fez ouvir. O pai se aproximou algum tempo depois, mas não o consolou, também não disse que ficaria tudo bem: “O que eu lhe disse foi o que os seus avós tentaram me dizer: que este é o seu país, este é o seu mundo, este é o seu corpo, e você tem que encontrar algum modo de viver dentro de tudo isso”. Mas, como se confecciona um “eu” nesses processos de “outridade”, no interior dos quais o corpo é brutalizado, neutralizado, aniquilado? Mais do que isso, o que pode um pai, diante da tarefa de educar seu filho, diante da experiência do racismo? O que ele pode lhe transmitir? O que tem a ensinar? O que tem a aprender? Se Jeferson Tenório nos mostra os fragmentos e os “becos da memória” no processo de reconstrução do pai, Ta-Nehisi Coates nos mostra como o próprio pai negro se encontra, também, numa existência em fragmentos, labiríntica.

Em outro episódio, Coates lembra a seu filho que o seu pai bateu nele por ter deixado um garoto roubá-lo, dois anos depois bateu nele por ter ameaçado a professora do nono ano: “não ser violento o bastantepoderia custar meu corpo. Ser violento demais poderia custar meu corpo. Não podíamos sair”. O que me parece importante é esse compartilhamento daexperiência subjetiva asfixiante, sem saída, que constitui a existência do negro, seja aqui no Brasil ou nos Estados Unidos. Dessa maneira, acredito ser capaz de sugerir uma resposta à seguinte pergunta, a última desse ensaio: a quem pertence a Literatura do Pertencimento?

Cuti acertou no alvo quando disse que, para compreendermos o que significa “literatura negro-brasileira”, o ponto nevrálgico é “o racismo e seus significados no tocante à manifestação de subjetividades negras”. E, ainda: “Quais experiências vividas, que sentimentos nutrem as pessoas, que fantasias, que vivências, que reações, enfim, são experimentadas por elas diante das consequências da discriminação racial e de sua presença psíquica, o preconceito?”. Porém, talvez possamos ler essa literatura de uma maneira mais ampliada. Como vimos, há uma experiência que atravessa a literatura brasileira e a norte-americana, pelo menos, a qual podemos denominar de experiência afrodiaspórica. Portanto, aLiteratura de Pertencimento é daqueles cuja existência é atravessada pela afrodiáspora, por esse processo histórico no qual os africanos foram forçados a deixar sua terra natal e viverem num território inimigo, tendo suas identidades destruídas e redefinidas, o que causou e causa extremo sofrimento.

A Literatura de Pertencimento talvez apareça como um lugar de cura, se ainda quisermos manter nossa gramática psicológica consagrada e se a entendermos como um processo de autotransformação. Como disse Coates: “Devorei os livros porque eram os raios de luz espreitando através daporta, e talvez depois daquela porta houvesse outro mundo”. Vale o mesmo naquela intervenção da Bell Hooks: “Cheguei à teoria porque estava machucada – a dor dentro de mim era tão intensa que eu não conseguiria continuar vivendo. Cheguei à teoria desesperada, querendo compreender – apreender o que estava acontecendo ao redor e dentro de mim. Mais importante, queria fazer a dor ir embora. Vi na teoria um local de cura”. Ameu ver, a Literatura do Pertencimento é isso: a produção de um lugar de acolhimento, reflexão e autotransformação do negro. Um lugar a partir do qual ele pode elaborar seus conflitos, ansiedades, frustrações, emoções, afetos, dando a eles outros significados, outros destinos, produzindo assim uma rica vida interior que lhe serve de base para enfrentar a condição precária do racismo.

Esse ensaio foi uma tentativa de tornar público a minha própria experiência de autotransformação a partir do contato com isso que podemos chamar de “Literatura de Pertencimento”. Esperançoso de que ele faça sentido para outras pessoas, em especial que meus alunos e alunas possam sentir o chamado feito por esse tipo de literatura e transformem também a psicologia de modo que em seu interior, pela primeira vez, a experiência subjetiva do racismo tenha lugar.

Referências

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Nota de fim:

[1] Esse projeto de extirpar o racismo e continuar seguindo adorando o racista não foi empreendido somente pela psicologia. Como demonstrou Paul Gilroy (2007), há textos de Kant que são altamente problemáticos e contribuíram para a raciologia por meio da defesa de pontos de vista claramente racistas. No entanto, em vez de uma reflexão profunda sobre os impactos de tais posicionamentos para o balanço crítico do projeto da modernidade, a opção da filosofia foi a de esconder tais textos e somente evidenciar obras menos problemáticas nesse quesito. Assim, de certa maneira, a filosofia comete os mesmos erros da psicologia: primeiro ela contribui decisivamente para a fundamentação da raciologia, depois denega com desfaçatez tal aliança, e segundo ela considera ser capaz de compreender a si mesma como algo alheio aos processos racistas. Assim, podemos defender um Kant iluminista, defensor da liberdade e da autonomia, como se tais posicionamentos racistas jamais tivessem existido. A própria possibilidade de pensar essa relação estranha entre filosofia e racismo é excluída também pela desconsideração das perspectivas mais radicais como a da “Dialética do Esclarecimento”, de Adorno e Horkheimer.