Não conseguiu firmar o nobre pacto entre o cosmos sangrento e a alma pura | Carlos Henrique dos Santos

Você ouve o primeiro tiro se misturando ao som do baile que ecoa por toda a favela, então suas pernas ameaçam fraquejar (mas não fraquejam), você respira fundo (lembra de um professor de educação física te dizendo que isso oxigena o cérebro), você fecha os olhos, você abre os olhos, você pensa que só quer sair vivo dali, então você vê um rapaz caminhando em sua direção, você o reconhece, você lembra da maconha que passava pra ele, você quase sente o cheiro do baseado sendo aceso, você se aproxima, você o abraça, você respira fundo (oxigenando o cérebro) e atira, você vê um pedaço do couro cabeludo dele se soltando, você sente que o corpo dele pesa, parece dormir, parece um bêbado dormindo em seus braços, você o solta, ouve o som seco do baque do corpo caindo com o rosto contra o chão e atira (atiraatira), você caminha com suas pistolas arriadas ainda meio tonto do que acabou de fazer, absorto, imerso, totalmente entregue ao momento, assim como a criança brinca e esquece do mundo a seu redor você anda, passos precisos, marcados, esquecido do mundo, apenas o momento existe e o momento é de confusão, você vê fumaça, correria, você não corre, você fica à espreita, absorto e observador, vê como corpos caem ao serem atingidos por balas, vê como tiros são dados, com e sem precisão, então você faz mira, você atira (atiraatiraatiraatiraatiraatiraatiraatira), você ouve o som dos seus tiros e dos outros tiros e da microfonia das caixas de som do baile, um piiiiiiii constante se misturando ao som dos tiros, você ouve um choro de criança distante, um cachorro que late, o motor de um carro velho, o ronco de uma moto velha, a buzina de um caminhão (ou será uma Kombi?), você dá dois passos para a frente e sente que as pistolas pesam em suas mãos, você se abaixa, você faz nova mira e atira (atiraatiraatiraatira), você corre por uma viela em passos rápidos e silenciosos, você se abaixa novamente atrás de um carro abandonado, vê um vira-lata se coçando do outro lado da rua e sorri da displicência com que o cachorro parece ignorar tudo a sua volta: tiro, fumaça, correria, barulho, gritos, muitos gritos, poças de sangue muito sangue, sangue tingindo todo o chão sob seus pés e nada disso incomoda o bichano, ele anda, para, se coça mais um pouco e late, late sozinho como se buscasse chamar com seu latido outros cachorros mas nenhum o responde, assim como ninguém te responde no radinho, abandonado como o vira-lata do outro lado da rua você tenta não sentir medo, porém ele é mais forte, ele te invade, te domina mas não te paralisa, não, você é mais forte que o medo, você tem coragem (e um pouco de medo), no entanto sua coragem é maior e é ela, coragem, quem te levanta, quem te faz dar alguns passos em meio ao caos ao redor, quem te aguça os sentidos e te faz ouvir um barulho à sua esquerda, então você atira (atiraatiraatira), nem olha, apenas atira, bum, som seco, bum, tiro dado, bum, menina morta: Cruel foi seu triunfo, tanta violência, mas (nem) tanta ternura.

Carlos Henrique dos Santos (Arraial do Cabo, RJ): "Tenho 42, sou casado com a Katerine, professor da rede estadual do Rio de Janeiro. Acredito que a leitura e educação sejam transformadoras. Gosto de futebol e plantas (dos Santos, 2024).