Exílio e sentimento Han na obra de Theresa Hak Kyung Cha | Tânia Ardito

· sair vivo

From A Far
What nationality
or what kindred and relation
what blood relation
what blood ties of blood
what ancestry
what race generation
what house clan tribe stock
strain
what lineage extraction
what breed sect gender
denomination caste
what stray ejection misplaced
Tertium Quid neither one thing
nor the other
Tombe desnues de naturalized
what transplant to dispel upon

Theresa Cha


Theresa Cha em menos de uma décadaproduziu uma obra complexa e instigante cujo cerne consiste no deslocamento como imigrante coreana nos EUA. Este ensaio analisa como a artista trabalhou o exílio, a memória e o sentimento coreano denominado han (한), do qual Cha é considerada umareferência na diáspora coreana por trabalhá-lo em sua arte.

Devido a versatilidade de trabalhos,meios e materiais faz-se necessário não só um recorte temático, mas também no número de obras que serão analisadas. Assim, a escolha recai em Presence Absence (1975), Father/Mother (1977), Chronology (1977) analisadas em conjunto a Clio Historye Melpomene Tragedy, que consistem em dois capítulos de Dictee, livro publicado em 1982, considerado de difícil classificação, sendo geralmente referenciado como um romance autobiográfico, mas no qual também estão presentes fotografias, mapas, documentos históricos e um trecho manuscrito com a própria caligrafia de Theresa Cha.

Cha Hak Kyung (차학경) nasceu em Busan na Coreia do Sul,em 1951. Seu nascimento já é marcado pelo trauma do deslocamento e da guerra, pois seus pais, assim como muitas famílias do sul da península coreana,fugiram para a cidade portuária com medo do avanço das tropas do norte. A família de Cha é marcada por histórias de fuga e exílio, a mãe de Cha Hak Kyung pertence às primeiras gerações de coreanos exilados na Manchúria, região que ao longo de anos serviria de abrigo aos que fugiram da opressão do domínio japonês na península.

Em 1962, a família de Cha sofreria nova deslocação, desta vez participando da diáspora coreana, promovida principalmente pelo governo sul-coreano que visava o controle populacional[3]. Vale ressaltar que o entendimento da palavra diáspora, conforme Bauböck & Faist (2010), é o termo ampliado a partir dos anos 1970, que inclui todo otipo de dispersão de pessoas que saíram de suas terras natais com destino a outros países. Até então, historicamente, o termo estava ligado à dispersão dos povos judeu e armênio.
O primeiro porto seria o Havaí, onde a famíliapermaneceria cerca de um ano, transferindo-se para São Francisco no ano seguinte. Cha Hak Kyung seria matriculada para estudar na escola católica exclusivamente feminina Convent of theSacred Heart High School, onde seria batizada com o nome de Theresa.

Theresa Cha receberia uma educação católica, cujas referências aliadas à sobreposição de culturas seriam agregadas aos seus trabalhos futuros, nos quais também seriam incorporados os idiomas que estudou inglês, francês, grego e latim, além da sua língua materna. Seus estudos superiores seriam iniciados em 1969 na Universidade de Berkeley, ano marcado por intensos movimentos estudantis e feministas, além da ascensão dos estudos de teoria do cinema francês que em conjunto influenciaram grandemente a obra de Cha.

Na universidade dedicou-se primeiramente aos estudos de literatura comparada aproximando-se de teorias de Roland Barthes e Émile Benveniste, e conheceria Michael Foucault pessoalmente por meio do seu orientador Leo Bersani[1]. No ano de 1976, receberia uma bolsa para estudar no Centré d’Études Américaines du Cinéma, em Paris, sendo que o seu interesse em semiótica e cinema são conjugados na publicação de Apparatus (1980) que consiste numa compilação de ensaios, escritos de artistas, realizadores, guionistas, fragmentos literários, além de dois ensaios próprios.

Theresa Cha é denominada uma artista versátil e transdisciplinar, recebendo em sua obra grande influência da arte conceitual dos anos 60 e 70. Transitou entre performance, aúdio, vídeo, poesia visual, fotografia, antologias e o romance autobiográfico Dictee. Desenvolveu trabalhos de caráter eclético utilizando diversas mídias, meios e materiais, assim, empregando uma terminologia mais recente como a apresentada por González & Pardo (2018), podemos considerar a obra da artista como plurimedial e plurimaterial.

Explorando temas como memória, tempo, trauma e funções da linguagem baseados, principalmente, nas experiências familiares de deslocamentos e exílio que provocaram uma fratura, conforme o entendimento de Edward Said: “O exílio [...] é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada” (Said, 2003, p. 45). E essa fratura, conforme nosso entendimento, está presente na arte de Theresa Cha, com peças deslocadas, escrita desmembrada, transmitindo a dor de uma ferida difícil de curar traduzida no sentimento Han. No entanto, para entender essas questões presentes na obra da artista, é necessário um pequeno contexto da história da península coreana na primeira metade do século XX, tratada no ponto a seguir.

 

1. Fraturas e resistências

Oficialmente, o domínio japonêssobre a península coreana é datado a partir de 1910 e terminado ao final da Segunda Grande Guerra com a vitória dos aliados e a divisão do país entre norte e sul, consistindo em áreas de influência soviética e estadunidense
respectivamente.

No entanto, segundo Cummings (1997),a região já era alvo de disputas desde meados do século XIX sendo motivo de interesses da Rússia, Japão, França e dos Estados Unidos. Nesse período chega ao fim a dinastia Joseon (1392-1897) e dá-se início ao Império Coreano numa tentativa de manter a soberania de seu território, pois o Japão já aplicava a sua força, advinda do Tratado de Amizade (1876) queabriria as portas para a dominação japonesa.

Após a vitória na guerra contra aRússia em 1905, que disputava a região, o Japão viria a se estabelecer definitivamente, anexando a península oficialmente ao império japonês em 1910, dando início a um processo de aculturação e assimilação do povo coreano,
obrigando, ao longo dos anos, a adoção dos nomes e dos usos e costumes japoneses, e chegando a proibir definitivamente o uso da língua coreana.

Diante da opressão, surgiram algunsmovimentos de resistência, destacando-se o Exército dos Justos, cuja origem remonta ao século XVI quando já houve uma primeira tentativa de invasão por parte do Japão. O Exército dos Justos reorganizou-se no século XIX e o primeiro conflito ocorreu após o assassinato da Rainha Min[2]. Sendo, aolongo dos anos, variados os conflitos, não é possível uma revisão exaustiva neste texto, porém convém ressaltar que a memória da resistência ainda se mantém na atualidade e é manifestada sobretudo em produções culturais.

Dos movimentos de resistência éimportante tratar, neste texto, o Movimento Primeiro de Março de 1919, pois Theresa Cha o retrata diretamente em sua obra, abordando uma de suas personagens. O Movimento também conhecido como Samil 삼일운동, como referência ao mês e dia doinício do Movimento (3-1) quando é iniciada abertamente a luta pela independência da península da Coreia com a reunião dos trinta e três nacionalistas que compunham o núcleo do movimento em um restaurante na cidade
de Seul com a finalidade de ler a declaração de independência.

O movimento tomou força e chegou aosresistentes estabelecidos na Manchúria, Sibéria, Japão, Estados Unidos e Europa, chegando a formar em Xangai um governo provisório. No entanto, os independentistas não conseguiram o apoio internacional esperado e mesmo com o envolvimento de cerca de 2 milhões de coreanos e 1.500 eventos ocorridos ao longo do ano, não foi o suficiente para enfrentar o domínio japonês. Muitos
líderes e ativistas foram presos, torturados e assassinados, entre eles a ativista Yu Guan Soon, destacada no capítulo Clio History de Dictee.

Imagem da ativista Yu Guan Soon | Dictee (1982, p. 25).


Yu Guan Soon faleceu aos 17 anosvítima de tortura cometida por dias seguidos, pois ela negava-se a dizer os nomes dos outros líderes. A ativista começou a organizar passeatas pacíficas em sua cidade natal, e com sua família bateu de porta em porta para encorajar os habitantes a participar de uma manifestação no Mercado Aunae. No entanto, durante a manifestação a polícia japonesa atirou nos manifestantes e, entre as dezenove pessoas mortas, estavam o pai e a mãe de Guan Soon. Theresa Cha escreve, conforme encontramos na imagem acima, a inscrição: “She is born of one mother and one father” (Cha, 1982, p. 25). Dessa forma, Cha celebra não só o sacrifício de Guan Soon, mas também dos pais da ativista que deram a vida pela causa. Celebra, assim, os seus próprios pais que também sofreram com a opressão, celebra todos os que foram oprimidos e esquecidos pela historiografia coreana.

Theresa Cha nos conta que uma jovemde dezessete anos morreu após ser torturada, pois estava lutando pela independência de seu país. Cha nos diz que a história dessas pessoas não pode ser esquecida, por isso para intitular o capítulo ela invoca Clio, a musa da historiografia, como num apelo para que os acontecimentos durante a ocupação japonesa não sejam esquecidos, nem aqueles que se sacrificaram. Cha mostra como ainda sente o gosto da injustiça, como o coração ainda está quebrado, como o povo coreano ainda sente a fratura da sua própria História. Dessa forma, a artista manifesta em sua arte o Han.

 

2. Han (한) — a beleza da dor

No capítulo Clio, já mencionado anteriormente, Theresa Cha reproduz a petição enviada, em 1909, pelos coreanos residentes no Havaí dirigida ao presidente Theodore Roosevelt. No documento, são elencados uma série de motivos pelos quais pedem ajuda direta do presidente norte-americano. No entanto, a petição não obtém a resposta pretendida, causando um ressentimento pelo país não ter sido ajudado, que ainda perdura. Assim como o ressentimento pela dura opressão e violência cometida pelo Japão também perdura. Esse ressentimento é o Han.

Oriundo do hanja 恨, que pode ser entendido como ressentimento, o Han é muitas vezes associado à ideia de trauma ou melancolia. Apesar de ser um sentimento cultivado por séculos, durante o século XX, esse sentimento passou a ser intimamente ligado com a colonização japonesa na península da Coreia. Não há realmente um consenso em relação às origens e o quanto a opressão do domínio japonês solidificou tal sentimento como sinônimo de trauma, ou inconformismo pela injustiça sofrida. O Han é considerado uma manifestação de uma memória coletiva, intergeracional que carrega uma dor que não faz parte somente do passado, mas ainda é sentida nas gerações atuais. Segundo Sandra Kim (2017), apesar de muitas vezes o Han ser caracterizado como um sentimento negativo, ele também carrega uma complexa beleza e, por isso, está intrinsecamente ligado às diversas manifestações culturais.

"Han has an important place inculture because it has become associated with what makes Korean cultural productions - such as visual art, folk music, traditional ceramics, literature, and film, among others - uniquely and beautifully Korean". (Kim, 2017, p. 256)

Ao invocar Clio, a musa da Históriacomo título de capítulo em Dictee,Theresa Cha faz um pedido à musa para que não se apague a injustiça sofrida pelo povo coreano; implora para que não se apague da memória que a ajuda foi negada por motivos imperialistas, apesar das súplicas nada foi feito em socorro. Apesar de lutarem bravamente, jovens foram sacrificados, como Yu Guan Soon. Cha encerra o capítulo relacionando os traumas do povo coreano com a memória e o tempo no poema:

Misses nothing. Time, that is. All else. All things else. All other, subject to time. Must answer to time, except. Still born. Aborted. Barely. Infant. Seed, germ, sprout, less even. Dormant. Stagnant. Missing.

The decapitated forms. Worn. Marred,recording a past, of previous forms. The present form face to face reveals the missing, the absent. Would-be-said remnant, memory. But the remnant is the whole.

The memory is the entire. Thelonging in the face of the lost. Maintains the missing. Fixed between the wax and wane indefinite not a sign of progress. All else age, in time. Except. Some are without. (Cha, 1982, p. 38).

No trecho acima, encontramos uma espécie de fragmentos de memórias, frases indefinidas, algo que se quer lembrar, mas não se consegue fazê-lo completamente. Há uma memory/memória que se apresenta como um todo, mas em paradoxo há uma absence/ausência com lacunas por preencher.

As lacunas por preencher tambémestão presentes na obra Presence Absence, catalogada pelo Berkeley Art Museum, tratando-se naverdade de 31 slides que documentam um livro de artista de Theresa Cha, datado de 1975, que foi incluído dois anos mais tarde em uma exposição na galeria Other Books and So[3] em Amsterdam.

A obra é um encadernado onde podemos ler na capa ao canto inferior direito a palavra absence. Segundo informações do museu, foi composta inicialmente por 36 páginas e nelas estavam reproduções fotocopiadas de uma fotografia de Theresa Cha com seus irmãos, supostamente, antes de chegar aos Estados Unidos. A cada página, as fotografias se movem cada vez mais para a direita atésumir por completo e ao fechar o livro podemos ler no canto superior esquerdo da contracapa a palavra presence.

A imagem em movimento da obra Presence Absence pode nos dar várias sugestões de interpretações, como a própria ideia do exílio. O movimento das fotografias demonstra a deslocação da família quando passam a constituir uma ausência na Coreia do Sul para ser uma presença nos Estados Unidos. Podemos também pensar na própria ideia de emória, que se constitui numa presença e ausência que vai fluindo e aos poucos tornando-se fragmentos de uma fratura exílica. E, ainda, ao conhecer a obra de Cha um pouco mais profundamente, podemos encontrar mais uma pista, nomeadamente no capítulo Melpomene Tragedy, da obra Dictee.

No capítulo acima mencionado, Theresa Cha continua a manifestar a presença do sentimento Han, como ressentimento, amargura, dor de uma separação, Cha invoca Melpomene para ajudá-la a cantar a sua própria tragédia:

Our destination is fixed on theperpetual motion of search. Fixed in its perpetual exile. Here at my return in eighteen years, the war is not ended. We fight the same war. We are inside the same struggle seeking the same destination. We are severed in Two by an abstract enemy under the title of liberators who have conveniently named the severance, Civil War. Cold War. Stalemate. (Cha, 1982, p. 81)

O trecho acima foi retirado do queseria uma carta para a mãe, não há como saber se a carta é real, ou apenas parte ficcional da obra. No entanto, a carta supostamente escrita é localizada na cidade de Seul. O que sabemos é que Theresa Cha visitou a Coreia do Sul
enquanto trabalhava em um projeto para um filme.

O retorno para o país natal, apósdezoito anos de ausência, deixou marcas profundas em Cha, principalmente porque percebeu que o país ainda sofria com as consequências da guerra, além de ter sido governado por uma sequência de ditaduras. Na altura da visita[4], opaís vivia em tensão, pois o povo era oprimido pelo severo governo ditatorial de Chun Doo-wan, que assumiu após um golpe de estado em 1979. Qualquer tentativa de redemocratização, ou mesmo movimentos pró-reunificação com a Coreia do Norte eram duramente reprimidos. Podemos perceber a angústia da artista ao reencontrar o país natal vivendo ainda sob opressão e que a luta por liberdade obtém como resposta a violência, dessa forma, Theresa Cha encontra o povo coreano a “fight the same war” (Cha, 1982, p. 81).

No entanto, a tragédia a que Theresa Cha pede ajuda para a musa Melpomene cantar não é apenas a de um país dividido em dois — Norte e Sul de um povo fraturado —, a tragédia que ela escreve em sua carta prosa-poética é a que atingiu o seu núcleo familiar.

It is 1962, eighteen years ago samemonth all over again. I am eleven years old. Running to the front door, Mother, you are holding my older brother pleading with him not to go out to the demonstration. [...] Orders, permission to use force against the students, have been dispatched. To be caught and beaten with sticks, and for others, shot, remassed, and carted off. [...]

Eighteen years pass. I am here forthe first time in eighteen years, Mother. We left here in this memory still fresh, still new. I speak another tongue, a second tongue. This is how distant I am. From then. From that time. (Cha, 1982, pp. 83-4-5)

Assim, ao trazer a sua tragédiapessoal, entendemos como a própria família de Theresa Hak Kyung Cha deixa a Coreia do Sul e parte para o exílio nos Estados Unidos, pois não poderia viver mais sob o peso de uma ditadura e a perda do irmão mais velho da artista. Deixa para trás um gosto amargo de injustiça, um trauma han, uma memória de um ente que mesmo no país de acolhimento se faz Presence Absence.


Presence Absence (1975) | Arquivo Berkeley Art Museum.


3. Exílio familiar

Neste último ponto do ensaio são apresentadas duas obras de Theresa Cha, nas quais as fotografias de família compõem o núcleo central. Tanto em Father/Mother (1977) como em Chronology (1977) encontramos combinados em um único suporte não só diferentes mídias, mas também diferentes materiais, podemos, assim, entender tratar-se de obras
plurimateriais além disso, numa categorização mais recente, como sendo obras em que estão presentes a “multimedialidad como la copresencia directa de varios medios en un mismo texto o suporte.” (González & Pardo, 2018, p. 21).

Father/Mother (1977), obra presente no acervo do Berkeley Art Museum, está catalogadacomo um livro de artista. É importante contextualizar a produção do chamado livro de artista, nos anos 70, pois trata-se de uma arte que ao longo dos tempos foi sendo categorizada de diversas maneiras[5].

Entre as décadas de 60 e 70,sobretudo nesta última, a arte do chamado artistbook/livro de artista ganhou a dimensão de uma obra de arte, no que podemosdizer, talvez, em uma tentativa de ser totalizante por incluir palavras, fotografias, colagens, desenhos, trabalhados de diversas formas, uma delas a fotocópia. O impulso do chamado livro de artista originou-se, provavelmente, nas experimentações de publicações efêmeras do grupo Fluxus, movimento formado por artistas americanos, europeus e asiáticos, destacando-se nomes como George Maciunas, Nam June Paik, Emmet Williams, Yoko Ono, entre outros.

Na capa de Father/Mother, encontramos grafadas em coreano as palavras 아버지(pai) e 엄마 (mãe). A obra[2] nos lembra um álbum de fotografias, consistindo nas reproduções fotocopiadas de fotos do pai e da mãe de Theresa Cha, dispostas alternadamente, ora coloridas em azul, ora em vermelho. Nas fotografias, o pai e a mãe da artista apresentam-se muito jovens, o que nos remete a um tempo anterior ao exílio nos Estados Unidos. A suposição é reforçada pelas cores utilizadas, o vermelho e o azul, presentes na bandeira da Coreia do Sul dispostas em lados opostos no desenho do yin-yang indicando a dualidade da vida. As fotografias são acompanhadas por palavras em coreano: 엄마(mamãe) 아빠 (papai) 사랑 (amor), 치성 (devoção ou dedicação) e ainda uma palavra de difícil explicação por carregar diversos sentidos 모습 que pelo contexto pode ser entendida como aspecto/feição. É interessante notar que as palavras mamãe e papai (엄마/아빠), na Coreia, são utilizadas sobretudo por crianças, o que reforça aqui o aspecto de uma memória de infância, de um tempo do qual a artista já estava separada, expressando um desejo de regresso, mas consciente de que o tempo não volta atrás.

En cierto sentido, hasta el momento, mi obra la hanconstituído una serie de metáforas sobre el regreso, el retorno a un tiempo y a un espacio perdido, siempre en el imaginario. El contenido de mi trabajo ha sido la realización de la impronta, la inscripción grabada a partir de la experiencia de marcharse. (Cha, conforme citada In: Fundació Antoni Tàpies, 2005, p. 43)

A experiência familiar é reforçada pela obra Chronology (1977), na qual estão reproduzidas as fotografias de família, além do paie da mãe, inclui também fotografias dos irmãos. Ao escolher retratar a família no período pré-exílio, Theresa Cha retrata figuras ‘mortas’ que, se no momento da obra poderiam estar fisicamente ‘vivas’ nas fotografias retratadas, já são pessoas que não existem, aquelas pessoas fotografadas deixaram de existir no momento da partida. Terão que assimilar uma nova cultura, nova língua e nova identidade — a menina Hak Kyung deixa de existir e surge Theresa. Na obra, as fotografias de família são o Spectrumdo qual nos fala Barthes no aspecto “terrível em que há em toda fotografia: o retorno do morto” (Barthes, 1984, p. 20). Nesse sentido, Ana Colmenares, que se dedicou ao estudo da obra de Theresa Cha, encontra aproximações com ahauntologia (ou fantologia) de Derrida no sentido de:

La presencia de un pasado «haunted», atrapado, recurrente,fantasmal, tiene mucho que ver con la experiencia traumática y su percepción de la temporalidad. El tiempo fuera de quicio (outof joint) rompe con la linealidad y el avance fantaseado por la sociedad occidental. [...] La secuencia de imágenes creada por Cha en Chronology, en tanto que cronología truncada de un imposible álbum familiar, se acerca a las imágenes que podríamos presentir como propias de lo hauntológico. (Colmenares, 2021, p. 316)

Imagem recortada de Chronology (1977), as fotografias do pai e da mãe da artista estão sobrepostas. | Acervo: Berkeley Art Museum.

 
A obra Chronology foi exposta na galeria Finegal em Amsterdam, no ano de 1977, composta por painéis com fotocópias e sobreposições das fotografias, todas em cor azul. Apesar de ser intitulada Chronology,não há uma cronologia propriamente, isto é, não é linear conforme apontou Ana Colmenares no trecho citado anteriormente. Colmenares (2021) acrescenta ainda que a cor azul está relacionada com amelancolia e nostalgia de uma memória que não é nítida, enfatizada pelo uso das fotocópias e sobreposição de imagens. Reforçando, a nosso entender, a ideia de uma memória fraturada, composta apenas por fragmentos que permitem à artista manifestar o sentimento Han em relação ao exílio forçado da família. Uma família que não teve a possibilidade de manifestar-se inteiramente em sua própria cultura, fraturada e exilada da pátria, e exilados de ‘si próprios’.

 

Imagem recortada de Chronology (1977), na fotografia Theresa Cha e seus irmãos | Acervo Berkeley Art Museum.

 


Considerações finais

“Mother, my first sound” (Cha, 1982,p. 45). A escolha dessa citação de Theresa Cha tem a intenção de demonstrar o que este ensaio não trabalhou, a questão da linguagem em suas obras. Porém, não deve deixar de ser mencionado como a fratura da linguagem percorre toda a obra da artista e como a aquisição de nova(s) línguas(s) também esteve presente. Em Dictee, Theresa Cha por meio da figurada mãe revela todo o drama pelo qual não só a família passou, mas também todo o povo coreano. Mas também revela como o povo resistiu, mantendo a sua língua, tradição e cultura, mesmo que secretamente.

Mother, you are eighteen years old. You were born in YongJung, Manchuria and this is where you now live. You are not Chinese. You are Korean. But your family moved here to escape the Japanese occupation [...]

You are Bilingual. You are Tri-lingual. The tongue that isforbidden is your own mother tongue. You speak in the dark. In the secret. The one that is yours. Your own. You speak very softly, you speak in a whisper. In the dark, in secret. Mother tongue is your refuge. It is being home. Being who you are. Truly. To speak makes you sad. Yearning. To utter each word is a privilege you risk by death. Not only for you but for all. (Cha, 1982, pp. 45-6)

Para concluir, no trecho acima,percebemos como a obra de Theresa Cha reflete resistência. Leva-nos a uma jornada cheia de traumas, fraturas, processos de aculturação, mágoa e exílio. Mas ela também mostra como a mãe resistiu, como a família resistiu, como um povo resistiu. Neste ensaio, acompanhamos apenas um pequeno trecho de uma obra que, em menos de uma década, deixou-nos vários caminhos por seguir, e também nos deixa uma fratura com a partida precoce da artista, ficamos,assim, em exílio perpétuo de uma obra que foi impossibilitada de trilhar a sua jornada. Theresa Chafoi raptada e assassinada em Nova Iorque, em 1982. Ela foi uma vítima circunstancial de um agressor, no entanto, somente anos mais tarde foi possível estabelecer a ligação entre ele e a vítima. Quando da sua morte, Theresa Cha tinha acabado de publicar Dictee edeixou um filme sobre a Mongólia por terminar, além de outras obras.

Notas de fim:

1. Leo Bersani é um acadêmico norte-americano reconhecido pelos seus contributos à crítica literária francesa e à teoria queer.

2. A imperatriz Myeongseong, mais conhecida como Rainha Min, foi assassinada no dia 8 de outubro de 1895 por se opor fortemente à aproximação das relações entre o Império Coreano e o Japão. O ocorrido gerou forte indignação no povo, resultando no aumento dos movimentos de resistência e também de conflitos.

3. Other Books and So é uma livraria e galeria considerada pioneirapor estar dedicada exclusivamente à publicação de artistas. O fundador da livraria foi Ulisses Carrión, considerado o artista mexicano mais influente da Arte Conceitual dos anos 60-70.

4. Em Dictee, a poética carta de Theresa Chapara a mãe é assinada com a data de 19 de abril; seguindo a cronologia, quase um mês depois iniciou-se um movimento fomentado principalmente por estudantes e professores universitários. O movimento teve seu palco principal na cidade de Gwangju, duramente reprimido, deixou marcas profundas na memória coletiva sul-coreana, sendo hoje conhecido como o Massacre de Gwangju.

5. Ver, por exemplo, a exposição organizada por Riva Castleman, A century of artist books, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque(MOMA), entre outubro de 1994 e janeiro de 1995. As obras apresentadas eram edições, deixando de fora peças únicas, e pretendia mostrar como a presença de artistas visuais interferem no entendimento do que é chamado livro de artista na Europa e Estados Unidos.

 

Referências bibliográficas

Obras de Theresa Hak Kyug Cha Presence/Absence (1975), Father/Mother (1977) e Chronology (1977) estão disponíveis paraconsulta pública no Online Archive ofCalifornia Consultasrealizadas entre maio e junho de 2023.

Barthes, R. (1984). A Câmara Clara: notas sobre fotografia.Tradução: Júlio Castañon Guimarães. Riode Janeiro: Editora Nova Fronteira.

Bauböck, R.;Faist, T. (2010). Diaspora andTransnationalism: Concepts, Theories and Methods. Amsterdam UniversityPress.

Cha, T. (1982). Dictee.New York: Tanam Press.

Colmenares. A. (2021). Las voces de Theresa Hak Kyung Cha: traumassilencios, balbuceos. València: Universitat de València.

Cummings. B. (1997). Korea's Place in the Sun: A Modern History. New York: W.W. Norton.

Fundación Antoni Tàpies (2005). El sueño delpúblico: Theresa Hak Kyung Cha. Barcelona: Fundació Antoni Tàpies.

González,A. G.; Pardo, P. (eds) (2018). Adaptácion2.0. Estudios comparados sobre intermedialidad. Binges: Éditions OrbiusTertius.

Kim, S. (2017). Korean Han and the Postcolonial Afterlives of “The Beauty of Sorrow”. Hawai’i:Korean Studies, Volume 41, pp. 253-279. Disponível em: https://hcommons.org/deposits/item/hc:16019/ Consultado: 04/06/2023.

MacKenzie. Fred. A. Korea’s fight for freedom. Disponívelem: https://www.gutenberg.org/ebooks/13368. Consultado em: 02/06/2023

Said, E. W. (2003). Reflexões sobreo exílio. In: Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras. pp. 46-60.

Silveira, P. Definições e indefinições do livro de artista. In: A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista[online]. 2nd ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, pp. 25-71. ISBN
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Thomas-Cambonie, H. (2018). Han and Trauma: the Inheritance of Violencein Korean American Literature. Disponível em: https://www.academia.edu/37619721/Han_and_Trauma_the_Inheritance_of_Violence_in_Korean_American_Literature. Consultado: 03/06/2023.

 

Tânia Ardito é doutoranda do Programa Doutoral Modernidades Comparadas e membro do grupo de investigação Género, Artes e Estudos Pós-Coloniais, ambos pela Universidade do Minho. É fundadora e editora da Subversa.