Entrevista com Wagner Schwartz

"arte para mim são efeitos de coisas vividas"

· entrevista,censura

Esta entrevista faz parte de uma pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sobre o tema do retorno da censura no contexto artístico brasileiro contemporâneo. Wagner falou sobre os efeitos em seu processo criativo gerados após os ataques que sofreu em decorrência da apresentação da peformance "La Bête", em 2017, no MAM-SP. A autoria da pesquisa é da psicanalista Morgana Rech, uma das fundadoras da Revista Subversa, que contou com supervisão do psicanalista e escritor Joel Birman.

Fotografia: site da editora Noz

MORGANA: Eu tenho conversado com as pessoas para tentar entender melhor sobre os efeitos que a censura e os ataques às obras de arte realizam no processo criativo, então posso começar te perguntando sobre isso. Você diria que houve um desvio na sua produção relacionado diretamente ao que aconteceu em 2017? Como isso afetou a obra e o trabalho de criar?

WAGNER: O que pode acontecer é: ou uma pessoa para de fazer arte, ela para de trabalhar ou, no meu caso, eu tento transformar esses ataques em uma forma de trabalho, em objeto de trabalho. Porque esse é o material que eu tenho agora nas mãos, eu não tenho outro. E eu não sou nostálgico, de imaginar que sem os ataques poderia ter acontecido de uma outra forma. Sim, poderia, mas não aconteceu, então eu tento olhar para as coisas como um fenômeno. Aconteceu isso, então a partir de um acontecimento, o que fazer? Como continuar a partir do acontecimento? Para que também o meu trabalho não fique parado no acontecimento. Aquilo aconteceu, é um ponto nevrálgico de uma crise política, de uma crise cultural também, educacional, mas o mais importante é entender quais são os efeitos daquilo, quais são os efeitos dessa crise no corpo. Então
é isso que eu trago hoje no meu trabalho, os efeitos dessa crise, e isso é pro resto da vida agora, não tem mais (como as pessoas dizem) trocar de assunto. Existe um trocar de assunto, sim, falo sobre o que aconteceu, mas a partir de um novo assunto. Eu não vou parar de falar sobre isso, que é o que muitos colegas já perguntaram, em encontros pessoais, se esse assunto não vai ser mudado. Não, não vai. Eu vou falar sobre ele até o final da vida, não tem jeito. A gente tem um grande exemplo: o Caetano Veloso, que foi exilado, mas até hoje o exílio está na música dele. Ele fala sobre isso, ele incorporou essa necessidade artístico-político de estar conectado. A gente acaba discorrendo sobre o autoritarismo mais tarde, é o que vejo que ele está fazendo. Às vezes, não direcionando, não dizendo diretamente sobre o ocorrido, mas quais são os efeitos desse (usando um verbo de hoje) cancelamento? Talvez hoje o artista tenha se tornado mais politizado ou mais esperançoso ou mais virtuoso... O que eu vejo é que tem um assunto que cola no seu corpo. Não sei se ele atravessa, porque atravessar é igual uma bala: entra e sai. Ele é aquela coisa que contamina o seu corpo. Essa ideia contaminou todas as outras ideias que havia no meu corpo até então, todos os outros projetos que havia na minha cabeça até então. Então, eu lido com isso agora. Quem quer esquecer que uma pandemia existiu, por exemplo, vai ficar perdido, porque não vai ser possível. Isso quem faz é a internet, o Instagram. A gente separa o que a gente não gosta de ver, a gente dá um delete, descarta. Isso na vida, na criação, não tem jeito. Nós não somos assim. A memória, o cérebro, as conexões cognitivas não acontecem dessa forma. Elas acontecem num encadeamento de coisas, encadeamento de fatos, encadeamento de assuntos. Então, esse assunto é um assunto a ser revisitado até o fim da minha vida. Agora, se eu vou falar a todo momento sobre o que eu vivi no momento dos ataques, isso é uma outra coisa. Isso com o tempo pode virar só uma questão de curiosidade, e como tem muito documento sendo produzido, talvez nem seja mais preciso falar sobre isso daqui a alguns anos. Mas a experiência física de ter vivido aquele momento, o que aquilo tudo causou, está no meu corpo e está nas minhas criações. Afeta. Não afeta nem para o bem e nem pro mal, não tem o bom e ruim nessa história. Não tem o sim e o não. Afeta. Então o que vai acontecer a partir de agora é afetado por ataques, por socorro, por amparo – porque não houve só os ataques. Uma vez eu disse que era uma pororoca: de um lado os ataques, do outro os apoios. Então eu estava ali no meio dessa pororoca, então era importante para mim imaginar como que eu conseguiria sair do meio, para que os dois se chocassem. E eu estou conseguindo. Não sei como,
deve ser um milagre também.

M: É um trabalho de se recusar a esquecer, então.

WAGNER: Exatamente. Não sucumbir ao medo e a recusa do esquecimento, a recusa de imaginar que eu sou só mais um. Para muitos eu deveria ter feito esse papel. Ser apenas um, relevar o que aconteceu, seguir a vida. Sabe essas coisas de Instagram que a gente ouve? Não, eu não sou assim.

M: Você falou de tomar o acontecido como próprio material artístico. Como é que isso acontece? A partir do momento que você pode tomar esse material como material de produção, o assunto se transforma?

WAGNER: Claro. O assunto se transforma, o título do assunto se transforma, tudo se transforma. Quando um acidente acontece... Vamos jogar isso para o corpo: você sofreu um acidente, você perde um dedo. A vida agora vai ser sem esse dedo. Então como é que vai ser essa vida? Quais as novas técnicas que você vai ter que aprender? É isso, para mim. Existe uma diferença: ou você passa a vida imaginando que não tem um dedo ali e que a vida só aconteceria se tivesse um dedo naquele lugar ou você passa a vida criando técnicas para existir sem o dedo. Essa é a minha postura diante da vida. Aconteceram os ataques: bem, agora eu sou impedido de ir ao restaurante que eu gostava no centro de São Paulo, então eu vou achar outro. Não existe só um jeito de viver, um lugar para ir. Eu passei muito aperto na escola sendo homossexual e vindo de uma família relativamente pobre, estudando em escolas públicas. Eu tive que construir o meu recreio, por exemplo. Eu não podia ficar no recreio com os outros amigos da escola porque eu só levava cascudo, então eu fui para a biblioteca. Enquanto eles iam para o recreio, eu ia para a biblioteca e fazia ali meu recreio. Não é um conformismo e nem mesmo um inconformismo, é uma necessidade de adaptação. Eu acho que evolui quem consegue se adaptar. Mantém-se vivo quem se adapta. Quem olha a situação como um fenômeno, e não de uma forma pessoal. É escutar os fenômenos, as informações e aprender a transformá-las ao seu modo.

M: E essa transformação compõe a sua obra, daqui para a frente.

WAGNER: Sim, claro. Não tem jeito. Elas fazem parte do meu projeto, da minha obra, do meu trabalho. E isso é a delícia, não? Imagina se eu fosse seguir uma espécie de uma cartilha, de uma organização mental, um conceito mental, projetar um conceito sobre o real e ter que viver a partir desse conceito imutável. Eu não sei se isso faz parte de um projeto artístico. Talvez para trabalhar num restaurante você precisa ter algumas leis. Outro dia eu estava falando com um chef de cozinha e ele estava dizendo que o chef não é artista. Bom, falei: para mim isso é muito importante. Eu sou maravilhado por chefs de cozinha, porque eu acho que são pessoas que entendem coisas que eu não entendo e que eu adoro. Eu falei para ele: é verdade. Se você fizer um café e colocar sal no café, errou. Não está bom, não deu certo. Se eu servir um café com sal dentro de uma galeria, isso tem um outro significado. Então a verdade é que as transformações, para o artista, este “deu errado” ou “deu certo”, para um artista, é sempre colocado em questão. Não sei se existe o certo e o errado realmente.

M: Não tem essa categoria dentro da galeria.

WAGNER: Não tem, então estamos sempre sendo contaminados por essas novas informações. Se elas tomam muita energia – no campo pessoal – se elas te colocam muito em risco, se elas te fazem sofrer, se causam sofrimento, quais os sentimentos que elas geram, como seu corpo consegue lidar com elas... Se isso é intenso demais para o meu corpo suportar, então eu passo para outro assunto. Mas, se não é, eu vou atrás daquilo.

M: Você falou numa entrevista que, na parte mais dura que você viveu em relação aos ataques, que houve um momento que foi como se fosse se visse morto, como se assistisse ao próprio funeral. Eu gostaria de saber como é o papel deste processo na criação artística, para você. Foi a primeira vez que você sentiu isso ou faz parte de certas experiências artísticas – seja de criação, seja de recepção, você se ver morto?

WAGNER: Não, eu sempre me senti muito vivo, aliás, fazendo. Mas estudei uma época o Boutoh, no que seria a “Dança da Morte”, mas nunca me joguei nessa aventura porque eu achei que ela estava muito longe de mim. Viver como um morto me foi me dada essa oportunidade porque eu vi a minha morte na internet. Eu fui morto. Houve duas fake news: uma que me mataram na frente da minha casa e a outra que eu me suicidei. Então como que isso altera minha criação? Por exemplo: o livro que eu estou escrevendo aqui na Antuérpia agora, nesse apartamento, fala sobre isso. Eu decidi e pedi ajuda para o Machado de Assis, em Brás Cubas, para escrever o meu livro. Então, eu escrevo uma parte dele como um morto, como Brás Cubas escreveu. É um morto que está narrando o livro.

M: E o morto ressucita?

WAGNER: Ah, não sei, você vai ter que ler o livro (risos). Mas a ideia é essa: existe um morto que fala! E é verdade, porque quando você começa a achar que você está morto, você fala cada coisa que você não falaria quando você estivesse vivo. Eu estava falando isso ontem aqui, porque foi o fechamento da minha residência, em que eu mostro para eles o que eu fiz. Então eu falei do livro e falei justamente sobre isso. Falei para as pessoas: vocês podem tentar também morrer e começar a falar depois de mortas. Vocês vão ter experiências bem interessantes. De repente coisas que não se fala, se fala. E uma menina perguntou: qual exemplo? Me dá um exemplo. Eu falei para ela: olha, por exemplo, você perguntou qual a sensação de lançar esse livro, né? Se eu acho que vai fazer bem para a sociedade, se isso vai mudar a sociedade... Eu, se eu estivesse vivo, eu te responderia: sim, eu acredito que pode ser um livro que pode entrar na sociedade e criar um sentimento ou de esperança ou de revolta nas pessoas que leem. Mas, como eu estou morto, eu vou te responder: esse livro é só de vingança, é uma vingança que eu estou fazendo contra o projeto desses políticos de me matar. A sala inteira riu. Eu falei: tá vendo? Um morto faz as pessoas rirem, porque ele diz a verdade. Eu falei: não, não tem mais essa coisa de ser bom politicamente ou de mostrar uma figura boa. Essa desculpa, esse senso de desculpa social que a gente tem, essas desculpas sociais para se dar bem, para estar entre as pessoas. Quando você vê a morte na sua frente e você consegue não ser captado por ela, o que vem depois, é muito interessante como processo, porque muitas coisas deixam de ter importância. Geralmente são as coisas mais fúteis ligadas ou a nosso trabalho ou à nossa vida pessoal. Para mim, um livro que diga a verdade é como, por exemplo, o Brás Cubas, um cara que só conseguiu dizer as coisas que ele queria dizer ou contar a história quando ele estava morto. E dizia coisas que ele não diria caso ele estivesse vivo. Então é mais ou menos assim o meu livro. São coisas que eu precisei dizer nesta situação de estar morto. Então isso alterou a minha criatividade? Alterou, porque eu resolvi escutar o acontecimento. Eu não quero me livrar do acontecimento, não quero esquecer o que aconteceu. Eu comemoro meu segundo aniversário no ano, que é no dia 29 de setembro, que são dois dias depois da minha apresentação no MAM onde me mataram. Eu lembro que uma vez as pessoas do MAM me disseram: mas Wagner, uma coisa que eu quero esquecer que aconteceu você está comemorando na internet, fazendo todo mundo lembrar de novo. Eu falei: eu não vou esquecer nunca mais. Nunca mais.

M: É uma outra forma de esquecer, de ultrapassar, passar por ela?

WAGNER: É uma outra forma de lembrar. É uma forma de lembrar sabendo que você está vivo. E passar por ela, sim, mas não como um turista. O turista vai na cidade, tira a foto e vai para casa. Não cria laços com aquilo. O laço dele é uma imagem. Eu crio laço com as coisas. Com todos: pessoas, passagens. Ontem, na minha apresentação aqui, eu vi que em quatro meses metade da casa eram os amigos que eu fiz aqui na Antuérpia. Eu não conhecia a Bélgica desse jeito e numa cidade que eu desconhecia completamente. Eu passo pelos lugares e levo as pessoas comigo, passo por eventos e trago esses eventos comigo. Eu não sei de onde isso vem, por que eu faço isso. É muito difícil de responder, mas eu sou uma pessoa que não deixo de considerar coisas, eventos, pessoas, objetos. Toda a vivência do dia a dia é importante, e dobrou a importância no momento que eu entendi que o meu corpo tinha essa fragilidade, porque, segundo Duchamp, “só os outros que morrem”. É verdade, só os outros que morrem, porque quando você morre, você não lembra mais disso, mas como eu tive a chance de ver a minha morte, eu não quero aquela factual. Eu quero essa agora, e nessa agora eu quero estar morto-vivo.

M: Eu tenho ouvido de algumas outras pessoas com quem falei sobre esse cenário da censura uma ideia de que “o perigo é que se comece a produzir autocensura”, por parte dos artistas. Então eu queria saber o que você acha disso, sobre a autocensura. No entanto, me parece que tudo o que você me disse até aqui é que você se recusa a fazer justamente isso, uma autocensura.

WAGNER: Sim, eu me recuso, tanto que eu tive que procurar outras formas de trabalho, outro jeito de trabalho, outros trabalhos, outra forma de atuar no meio artístico. Eu não sei mais se eu sou performer, se estou me transformando num escritor. Hoje eu gosto muito de escrever, sempre gostei, mas agora estou gostando mais e gastando mais tempo com isso. As pessoas que não me conheciam antes – porque 2017 foi quando eu nasci – me veem como um escritor que fez uma performance... Tem alguma coisa vindo nesse tempo, e como ele é muito novo – são cinco anos – eu ainda sou uma criança, então eu estou entendendo o que está acontecendo agora. Mas a autocensura não é definitivamente a minha resposta a essas pessoas, nem o medo foi. Eu saí com uma sensação de exilado do Brasil no final de setembro e durou cinco meses. Eu não fiquei mais, eu não consegui ficar mais, em cinco meses eu estava de volta. Mesmo com uma carga muito difícil de medo, passando mal, etc., mas isso não impedia o meu modo de agir como eu acreditava que deveria agir. E você não volta para os mesmos lugares que você trabalhava antes. Muitos lugares já não te querem mais. E são lugares que, muitas vezes, garantiam a sua vida como artista. Então, eu tenho que encontrar outros, que permitam a esse novo Wagner existir. Mas é o que eu te falava rapidamente sobre a minha questão da infância, porque como eu já fui treinado desde criança a ter que encontrar outros lugares, e não ir apenas aos lugares onde todo mundo frequenta, eu aprendi. Isso é uma técnica que meu corpo conhece, e eu faço festa dentro da biblioteca também, não precisa ser só o recreio. Então eu estou entendendo agora quais são os lugares que eu posso existir. Olha, eu estou num lugar hoje onde só escritores existem, um lugar reservado para escritores ameaçados em seus países de procedência. E é muito esforço para chegar aqui. Foram dois anos criando esse projeto para que ele pudesse estar aqui. A residência chama-se PEN International, e aqui eu estou na PEN Flandlers, a PEN flamenga, que é na Antuérpia, e isso é um novo trabalho que surgiu, que não existia antes quando eu era só coreógrafo, ou só performer. Eu nunca imaginei que eu estaria aqui, e agora eu estou. Claro que existem perdas, que existem tristezas, eu não estou dizendo que isso não existe. O que eu não quero é que essas perdas e essas tristezas sejam o foco e impeçam que eu faça novas descobertas.

M: Sim, vai fundando espaços como aconteceria se aquilo não tivesse ocorrido.

WAGNER: Exatamente, e como aquilo ocorreu e a gente não pode voltar no tempo, basta, sabe? Como que eu vou continuar? É exatamente isso: quais são os efeitos disso que aconteceu agora? Eu estou sempre com essa frase na minha cabeça: qual é o efeito disso que está acontecendo agora? E prestar atenção nos efeitos, porque arte para mim são efeitos de coisas vividas, de eventos vividos, e é assim que eu vou viver.

Edição: Revista Subversa