Subversa: Talvez não seja muito problemático começar essa entrevista com o pressuposto ontológico segundo o qual quatro objetos existem. Primeiro, Ricardo Lísias, uma pessoa de carne e osso, que participou da produção de Diário da Cadeia, um romance publicado pela editora Record em 2017. Segundo, Eduardo Cunha (pseudônimo) que é um objeto ficcional que assina essa obra e que foi criado exclusivamente por Ricardo Lísias ou por esse em conjunto com outras pessoas, digamos, algum outro editor ou ghost writer. Terceiro, o narrador de Diário da Cadeia que é outro objeto ficcional e que descreve a si como “Eduardo Cunha (o verdadeiro)” na página 147. Quarto, uma pessoa de carne e osso que se chama “Eduardo Cunha”; um ex-deputado federal e ex-presidente da câmara que instaurou e conduziu em 2015 o processo de impeachment contra a então presidente Dilma Rousseff e que foi cassado e ficou encarcerado entre 2017 e 2020.
Ricardo Lísias: Eu diria apenas que a segunda e a terceira figuras, o Eduardo Cunha que assina o livro e o que narra são a mesma. No caso desse livro, como no de muitos da literatura contemporânea, a forma como a obra está assinada já faz parte da obra, bem como a capa e a orelha.
Subversa: Quem fala nessa entrevista e como você gostaria que ela fosse intitulada? Por exemplo, “Entrevista com Ricardo Lísias”, “Entrevista com Eduardo Cunha (pseudônimo)”, algum outro título etc?
RL: Quem responde sou eu, o escritor Ricardo Lísias. O “Eduardo Cunha (pseudônimo)” é uma criação minha que foi adotada apenas para assinar e narrar o livro Diário da Cadeia.
Subversa: Uma decisão mais tradicional seria assinar Diário da Cadeia como Ricardo Lísias. Por que isso não foi feito?
RL: Isso nunca esteve no meu horizonte. Se eu tivesse feito isso, o ex-deputado Eduardo Cunha não teria se incomodado, não teria se sentido criticado pelo livro e não teria reconhecido meu trabalho como algo que foi contra ele de forma tão intensa a ponto de mover por anos a fio um processo judicial para fazer o livro sumir das livrarias.
Subversa: Na sua interpretação, qual a relação entre esses dois objetos ficcionais que mencionamos, isto é, o Eduardo Cunha (pseudônimo) que assina o Diário da Cadeia e aquele objeto ficcional que é o narrador desse romance e nomeia a si na página 147 “Eduardo Cunha (o verdadeiro)”? Isto é, essa seria uma relação de identidade, de semelhança, de algum outro tipo?
RL: São o mesmo. No caso de Diário da Cadeia, a forma de assinar a obra já faz parte da obra, bem como a capa, a orelha e eu diria até mais: o livro existir. Quem sabe até deixar de existir, vai saber. Será algo que o livro revelará do Brasil contemporâneo...
Subversa: O narrador do romance menciona algumas vezes a obra poética do ex-presidente Michel Temer. Por que, em sua opinião, a existência dessa obra lhe chama tanta atenção?
RL: Eduardo Cunha e Michel Temer são políticos próximos. Em muitos momentos da vida política brasileira estiveram realmente atrelados. Assim, como no livro Cunha está agora interessado em se tornar escritor, é natural que ele atente para a obra de um de seus principais “colegas”, para usar uma palavra neutra e entre aspas.
Subversa: Ainda sobre a obra poética de Michel Temer, vejamos o poema abaixo, intitulado “Embarque”, publicado em 2012 em “Anônima Intimidade” (Ed. Topbooks). Em sua opinião, é possível postular a existência de um eu lírico nesse poema que seja diferenteda figura pública, Michel Temer?
EMBARQUE
Embarquei na tua nau
Sem rumo. Eu e tu.
Tu, porque não sabias
Para onde querias ir.
Eu, porque já tomei muitos rumos
Sem chegar alugar nenhum.
RL: Muito boa pergunta. Assim que parar de rir eu volto para responder.(...) Acho que é o próprio Michel Temer, ex-presidente e um dos articuladores do golpe parlamentar contra Dilma Roussef. O poema fala da carreira política dele.
Subversa: O narrador tem também duas grandes preocupações ligadas a uma possível vigilância sobre o que ele está escrevendo. Ele se preocupa em deixar material no lixo, acreditando que alguém levará até algum jornal. Ele também se preocupa com a possibilidade de existirem câmeras gravando sua escrita. Em sua opinião, o narrador está passando por uma experiência paranoica ou construindo uma estratégia de marketing?
RL: Enfim, outra boa pergunta, bastante difícil. Eu diria que o narrador é uma figura engenhosa e que, dentro desse engenho, está passando por problemas bastante difíceis (naquele momento), como a prisão no interior da Operação Lava Jato. Isso posto, parece que de fato ele desenvolve uma experiência paranoica. Só que, continuando aceitando que ele é engenhoso, possivelmente ele tenta virar essa paranoia a seu favor. Algo como: enfim, se estão me filmando e não tem outro jeito, que eu manipule a câmera...
Subversa: À luz de diversas passagens (e.g., p. 16-18, p.28-30, p.32, etc.) parece plausível atribuir ao narrador de Diário da Cadeia o que podemos chamar de tese criminal contingente: a que, no Brasil, o conceito de “crime” é extremamente historicamente maleável, sendo utilizado de diferentes modos em diferentes contextos políticos. Por exemplo, “crime”, sugere esse narrador, tinha um sentido e uma extensão no início do primeiro governo Dilma, mas outros sentido e extensão no final do segundo governo Dilma. Esse narrador também recorrentemente se vale do conceito de “Deus” bem como de citações da Bíblia, como indicado pelas páginas 9, 12, 14, 16 etc. Logo, também
parece plausível atribuir a esse objeto ficcional um comprometimento com outra tese, digamos, a tese criminal necessária; a que há uma lei imutável estabelecida por Deus e que, sendo assim, há também um conceito de “crime” imutável, isto é, o daquilo que violaria essa lei. Qual a sua visão acerca dessas duas teses e da relação entre elas? Isto é, são as duas verdadeiras? Ambas falsas? Uma falsa e a outra verdadeira? etc.
RL: Sem dúvida o conceito de crime varia muito no Brasil conforme a conveniência. É isso aliás que estamos vendo com a revelação de que há uma negociação para amainar as penas das pessoas condenadas por tentar dar um golpe de estado no dia 8/1/2023. Com o passar do tempo a gravidade do crime que cometeram está mudando. O narrador do livro se atenta a isso e tenta tirar vantagem disso. Com relação à tese criminal necessária, acho que o narrador também acredita nela (eu de forma alguma) e a manipula para seus interesses, como aliás faz com tudo.
Subversa: Como você entende a relação do narrador de Diário da Cadeia com a pessoa de carne e osso, Eduardo Cunha? Isto é, o primeiro é uma espécie de representação psicológica, contraparte existente num mundo possível, pastiche do segundo etc.? Nenhuma dessas opções?
RL: O livro é uma tentativa de fazer uma crítica política através da sátira. Grosso modo, é uma gozação com a cara do ex-deputado federal Eduardo Cunha. No entanto, o grau de ódio a que o ex-deputado atingiu com o livro foi tal que eu desconfio que talvez haja mais ali, como quem sabe a possibilidade de um desnudamento, o que evidentemente não poderia ser admitido por ele.
Subversa: Ao longo do livro (e.g., na página 19, 21, 36 etc.), notícias de jornal são citadas. Ademais, algumas das sentenças do narrador desse livro não parecem particularmente sofisticadas e ecoam o que foi mais ou menos diretamente aferido pela imprensa ao Eduardo Cunha de carne e osso. Exemplos dessas sentenças são “livrei o Brasil de se tornar uma Venezuela, e isso o povo sabe muito bem avaliar” (p. 67); “um dos objetivos dessa operação Lava Jato é fazer o Brasil virar Cuba” (p. 168), etc. Na sua visão, aquilo que foi publicado na imprensa acerca do Eduardo Cunha de carne e osso é, não uma simplificação até certo ponto sensacionalista, mas, sim, uma evidência relevante acerca da psicologia dessa pessoa?
RL: Enfim, acho que há várias possibilidades conforme o caso. A imprensa também cria suas personagens e vai manobrando conforme suas criações. Com certeza ele foi importante em determinados momentos para realizar os interesses da classe alta, que são defendidos por alguns setores da imprensa. Assim interessava complexificá-lo. Por outro lado, feito o trabalho ele parece ter se tornado um tanto quanto descartável, o que de fato ocorreu, para novamente ter um lugar de poder moderado, mas existente hoje, com o declínio absoluto (e merecido) da operação lava jato.
Subversa: Você leu o livro escrito pelo próprio Eduardo Cunha de carne e osso, Tchau, querida: o diário do impeachment, publicado pela editora Matrix em 2021?
RL: Li, sim, É um livro chato, com estilo maçante, sem nada de muito relevante para a cultura brasileira, não é à toa que naufragou.
Subversa: Como você entende a relação entre a visão acerca da política nacional apresentada em Tchau, querida: o diário do impeachment com aquela articulada pelo narrador de Diário da Cadeia? Em outras palavras, seria a primeira visão mais sofisticada do que a segunda? Menos sofisticada? Mais ou menos verdadeira? etc.
RL: São obras de natureza muito diferente. Acredito que o ódio que o ex-deputado dedica ao meu livro é devido em parte ao fato de que ele evidentemente notou que a sátira estava mais adequada para a sua própria trajetória do que o texto pretensamente sério. Eu mesmo admito que essa constatação deve ter sido bem dura...
Subversa: O problema de muitos ou mesmo da maioria dos escritores contemporâneos do Brasil não parece ser exatamente com algo que poderia ser chamado de “censura”, mas, sim, com uma espécie de irrelevância social. Isso porque muitos ou mesmo a maioria daquilo que esses escritores produzem é lida apenas por uma grupo consideravelmente restrito de pessoas. Por exemplo, apenas por seus familiares, amigos e conhecidos pessoais. Esse não parece ser o caso de Diário da Cadeia e de outras obras assinadas com o nome próprio, “Ricardo Lísias”. Ademais, essas obras são recorrentemente mencionadas na grande imprensa (e.g., no jornal, O Globo). O que, na sua visão, fez com que essas obras superassem a irrelevância social?
RL: Embora eu acredite que o preambulo da questão seja verdadeiro, eu não sei respondê-la com segurança. Enfim, nem sempre foi dessa forma. De fato acredito que algo tenha acontecido a partir dos anos 1980 (o que deve coincidir com a redemocratização) para que chegássemos a esse estado atual. Eu tenho um projeto estético que busco realizar com algum tipo de coerência. Nem sempre dá certo, é claro, e meus trabalhos são irregulares. Mas acredito que em algum ponto de incômodo eu cheguei com eles. Tentarei continuar assim.
Subversa: Teria sido pior para a divulgação de Diário da Cadeia se o Eduardo Cunha de carne e osso não tivesse entrado com um processo demandando a retirada de circulação desse livro?
RL: Na verdade acho que o livro circularia mais: como ele foi proibido, liberado, proibido de novo e por aí vai, tudo isso causou uma dificuldade muito grande de circulação, o que aliás era outra intenção do ex-deputado com os seus processos e recursos.
Subversa 14: Qual o papel da estratégia de marketing no processo da sua escrita?
RL: Nenhum.
Subversa 15: “Censura” não é um termo particularmente fácil de ser definido. Na verdade, uma tese, próxima do que chamamos antes de tese criminal contingente (ver Subversa 4), talvez seja pertinente: a que, não só no Brasil mas no mundo, o conceito de
“censura” tem sido usado de modo extremamente historicamente maleável. Logo, o termo “censura” ganha diferentes sentidos bem como extensões em diferentes contextos, sendo os sentidos e extensões de “censura” no Brasil contemporâneo diferentes daqueles de outros contextos, digamos, contextos passados do Brasil, contextos presentes de outros países como os EUA ou a China, etc. Para você, o que é censura?
Resposta: De fato é um termo amplo, mas vou tentar circunscrevê-lo para mim ao seu caso mais grave, no que diz respeito à arte: é quando alguém que tem um poder instituído para isso (o Poder Judiciário) impede a circulação de um trabalho artístico. Na minha opinião, sendo bastante direto, isso jamais poderia ocorrer. O Poder Judiciário não deveria impedir a circulação de nenhuma obra artística.
Subversa: O romance Diário da Cadeia foi censurado?
RL: Foi censurado por uma decisão de primeira instância há alguns anos; depois essa censura foi levantada e agora ele está censurado de novo.
Subversa: É pior sercensurado ou ser socialmente irrelevante?
RL: Espero jamais ter elementos para poder fazer esse balanceamento!!
Subversa: Muito obrigado por nos ter concedido essa entrevista.
RL: eu que agradeço. Até a próxima.