Pequeno arsenal semântico sobre a queda | Morgana Rech

Assisti recentemente ao filme “Anatomia de uma queda” (2023), de Justine Triet. Fui contra minha vontade de ir contra a vontade de todos e caí no espírito do tempo, para ver onde ia dar. Mas fiz uma coisa controversa antes, para não me perder completamente de mim: assisti antes a outro filme da mesma diretora, o “Sibyl”, de 2021, para ter a falsa sensação de saber onde eu estava pisando.

Descobri, então, que não foi a primeira vez que ela retratou em filme a perene função que a escrita exerce quando levada às últimas consequências: a de tornar quem escreve especialista em cair. Ou: sobre o par inseparável arte-morte; ou: sobre a arte não ser uma saída para nada, tanto menos para a morte, mas uma entrada não desesperada nela. E sobre um problema ainda mais específico, que é a importância da crise criativa artística nisso tudo, que flagra melhor do que qualquer outro acontecimento a união miserável entre vida e ficção.

Em cada um dos filmes de Triet (1: Anatomia de uma queda; 2: Sibyl), há dois elementos fundamentais: uma pessoa esteve em crise criativa e existe um julgamento em torno das estratégias que a personagem encontrou para contorná-la. O mundo material que os filmes exibem, como o tribunal onde a personagem Sandra (filme 1) é julgada, o consultório onde Sibyl (filme 2) trabalha como psicanalista, tudo parece ficção o tempo todo na perspectiva delas. Só o mundo ficcional parece real através dos livros que quase morreram para serem escritos, perseguidos e preservados como a única oportunidade de sobrevivência em cenários hostis. Acho mesmo que são eles os responsáveis pelas quedas que os filmes mostram. No filme 1, Sibyl escreve às custas de um enlouquecimento temporário que lhe faz cair da sua posição de analista e escorregar pelas mãos o seu código de ética profissional. Já o filme 2 mostra que o desespero de um bloqueio criativo é capaz de arremessar quem o sofre pela janela num ato de contenção de sua agressividade.

Cada um cai na arte conforme pode. Não tem negociação: a arte dá a queda conforme o colchão que a gente imagina que tem atrás das costas. Na melhor das hipóteses, fazemos como Jean Genet, que diz que a cada vez que lê ou assiste a uma obra de arte, o mínimo que pode esperar de si é escrevê-la ao mesmo tempo, produzi-la ao mesmo tempo. Foi assim que eu assisti a esses filmes: caindo, mas foi caindo num levante de querer escrever este pequeno arsenal de sentidos para a queda, e por isso mesmo quero fazer isso me desprendendo de qualquer tentativa de spoiler, pois ninguém escreve tão organizadamente enquanto cai. Muito menos teoriza, até porque nem saberia dizer se sou capaz de teorizar sobre arte ou psicanálise aqui. Aliás, você escolhe se isto é um texto de psicanálise ou de arte, ou de outra ou coisa nenhuma. Você escolhe quase tudo aqui, eu só estou usando as palavras, a começar pelos dois primeiros sentidos que me ocorrem quando penso nas quedas mais comuns que a vida nos obriga a fazer, que é cair da gente e cair do mundo. Os sentidos seguintes são uma espécie de consequência dessas duas experiências fundamentais. De três a seis só pode haver levante.

1. cair de si
nomes populares: despersonalização, despossessão, exílio.

Sibyl recusa um caso clínico de uma jovem que lhe aparece pedindo um socorro atormentado. Porém, a paciente insiste, telefona, escreve, liga de novo, persegue. A analista cede e a pessoa que chega é como uma versão mais excitante dela própria. Então ela vai caindo de sua alma como que caindo da borda de uma piscina que dá para lugar nenhum; e fica no lugar nenhum, nas bordas do território anímico e no início do abismo, procurando em vão pela volta ao lugar de antes que ela não encontra mais. Então ela se joga para além da borda do que ela é e passa a se visitar como uma estrangeira, juntando carimbos por onde passa e nos quais nem sequer se reconhece. Acontece que esse é o lugar perfeito para ela começar a escrever, então ela vai se chocando o tempo todo com o óbvio de si, do mesmo jeito que descobriu que escutar os outros era uma volta ao mundo que ela poderia dar sem sair de sua cidade. Sair de si é mais ou menos isso: é quando você topa se exilar em qualquer outro lugar para não ter que sair de onde você está porque o amor pelas histórias que você está construindo é grande demais.

2: cair do mundo
nomes populares: trauma, choque, rapto.

Há várias cenas em “Anatomia de uma queda” que mostram Daniel, uma criança de sete ou oito anos, participando de um julgamento onde investiga-se a morte de seu pai enquanto sua mãe é acusada de matá-lo. Não fosse o bastante, uma equipe de perícia reproduz, como num massacre, o caminho que levou o homem à morte, solicitando a participação de Daniel. O garoto permanece até o fim porque sabe que sair é uma forma daquele tribunal lhe perseguir a vida inteira. Só ficando ali ele consegue usar as sensações dolorosas a seu favor, e então ele mergulha num lugar inabitável para conseguir povoá-lo novamente. Assim como chega o momento do filme 2 em que Sibyl sabe que não tem outro jeito a não ser se embriagar para poder ficar mais em si do que nunca. Então ela pega a garrafa de álcool exatamente como sua mãe fazia e entorpece novamente todos os furos da realidade que possam fazê-la sentir saudades. Eis o problema: a realidade ficou entorpecente para Sibyl porque o mundo deixa de estar para ela.

3: a queda da capacidade criativa

Quando Samuel (filme 1) não conseguia mais escrever, começou a gravar alguns diálogos em família; seus, com a mulher, com o filho. Ele procurava um impasse, um conflito com o qual se ocupar, desde que não fosse a guerra travada com a culpa por não ter cuidado bem o suficiente do filho quando ainda se sentia criativo. Procurava outra cena em que pudesse também se ver culpado para poder sair de si/cair de si; outro modo de agitar esses dois pares dissonantes para ver se do atrito lhe sobrava um pouco de agitação criativa. Ou então quando Sibyl deixa de escrever para esquecer um amor que viveu com o seu maior interlocutor, o único que a capturou por completo. E depois também passa a procurar outra cena que lhe responda: era melhor ter ficado? ou não? A resposta só pode ser ficcional para uma dor como essa, que é um lugar. A dor é uma casa onde se habita com móveis, memórias penduradas, chaleira apitando e roupa secando. A queda da criatividade é quando a gente perde as chaves.

4: cair dos braços do ideal

Sibyl é uma psicanalista que baba no divã, nos seus cochilos entre um paciente e outro. Só quem já jogou os ideais no chão da própria vida pode babar em seu divã e se desfazer do conforto claustrofóbico de estar sempre acordado ou sob luz branca. E depois acordar para receber o próximo paciente com a ferramenta clínica mais fundamental: uma falta de entendimento parcial, absoluto, silencioso e gritante.

5: cair em si

A mais difícil, a mais gostosa, a mais Beth Carvalho: levantar a poeira e dar a volta por cima, mas (nunca esquecer) só depois de reconhecer a queda. Pegar o livro pelos cabelos, agarrar a vida pelo chifre. Lembrar quem se é, mas saber que esse alguém já foi. Sem sair de você a ponto de precisar de carimbo para entrar de novo em si; sem cair de você a ponto de se embriagar com a cara do abismo, a não ser que você ache que consegue sair ileso desse compromisso inadiável, que é dar uma olhadinha para o fundo da sua alma de vez em quando. Jogar seus ideais para cima, fazer deles uma moeda cara-e-coroa, ver o que sobra, o que fica. O que já é. Marcar um encontro apaixonado com alguma coisa que já é.

6: cair no amor (to fall in love)

O olhar de Triet sobre o amor me chamou especialmente a atenção. Ela mostra um jeito de cair no amor como quem se deixa cair dentro de uma marca, seja ela no corpo amado, na areia, na árvore, no papel, no chão. E como quem aceita a impermanência daquela marca com a mesma força com que acredita na permanência do momento em que ela foi feita. Semelhante a traçar uma linha ao redor do corpo da criança na escola, deitada no papel pardo, para que ela veja seu tamanho, mesmo que saibamos que amanhã já não é. E depois a criança precisar se mover, e perder a linha, e riscar outra, depois desenhar dois corpos ou mais, juntos, ganhando tamanho maior. O marido de Sandra cai da janela (filme 1); na neve. Daniel é o filho deles. Mãe e filho, órfãos, passam o filme todo estatelados na marca de sangue que o homem deixou na neve em solo branco congelado. Passam o filme todo se recusando a ficar órfãos um do outro. Estatelados num espanto absoluto. E dentro desse espanto estatelado absoluto de amor por Samuel, eles se amam mais forte.

O Levante

Eu poderia seguir até o número sete, ou oito, ou nove, se minha queda nesse assunto permitisse, mas sete é meu número de superstição e eu não quero chegar lá hoje. O restante desse pequeno arsenal semântico particular sobre a queda agora nem é mais tão particular e vocês podem imaginar outros. Por exemplo: cair na falsa sensação de perder o chão quando descendo uma ladeira muito rápido. Cair numa cilada, na malha fina, em papo de homem. Todos conhecemos esse primeiro acontecimento de nossa vida: suportar a queda para comemorar que se levantou.

Tenho a impressão que se Sandra tivesse sido declarada culpada pela morte do marido, ela lamentaria o mínimo possível. Talvez ela ainda assim conseguisse escrever dentro da cadeia, enquanto seu filho aprende piano. Ela encara aquele tribunal como uma obra que Samuel lhe deixou, talvez a melhor ou a única. Ela sabe que aquela queda pela janela é uma ficção em ato e que ela topou ser sua personagem central. O filho percebe a grandeza da mãe e cria uma obra sua, afinal de contas, salvando pai e mãe de suas prisões.

Acho que, no fim, escreve-se bem quando aceitamos a escrita como uma queda inevitável da qual não queremos mais sair correndo porta afora do tribunal. Quando entendemos que o tribunal não passa de uma pequena ficção diária que nos acompanha. É um risco, a escrita. Pessoas caem da janela por essa razão; dão a vida por suficientemente bem contada (e talvez estejam certos). Outras, como Sibyl, ferem a ética de um processo terapêutico ao se transformar na paciente, que depois a absolve, tirando nacos de sua história para escrever um livro e voltar a si. Sibyl mostra como se faz, porque a arte mostra a obra e mostra também como se faz. Que ao escrever você cai várias vezes nessas ou noutras hipóteses sobre o que é cair. Mas também é não cair em nenhuma dessas hipóteses. É cair séria e temporariamente nesse estado de graça que estou tentando alcançar aqui. Sibyl deixa de babar; levanta-se do divã e vai atrás da sua história impossível. Daniel deixa de chorar e abre a boca para dizer que de cego ele não tinha nada. Até Samuel deixa de agredir e produz uma mudança permanente na vida da família.

E Sandra? Bem, talvez Sandra seja como a diretora Triet: “eu posso escrever em qualquer lugar”, ela diz. Mas a vida biográfica da autora do filme não corresponde à vida da personagem principal, é lógico, todo mundo sabe. Isso aparece inclusive na cena do julgamento de Sandra, quando a tentativa do promotor de acusá-la de assassina através de trechos de seu livro é frustrada por todos. Na tribuna, a imaginação é legítima, então eu imagino Triet como uma escritora experiente que traça hipóteses para criar aquelas obras magníficas através de seus próprios impasses. E mais: imagino Triet em crises-seguidas-de-crise criativas. E depois a imagino pegando a crise pelo chifre e me arrebatando outra vez, me fazendo cair na queda viciante que é escrever. E imagino mesmo que Triet sai de suas crises junto com suas personagens que enfrentam suas crises pegando-as pelos cabelos. E não quero saber se estou certa ou errada, porque aí eu cairia num lugar que não me interessa no momento, enquanto estou muito preocupada em me manter no levante que esses filmes me causaram, e descobrir para onde vou depois deles.

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Este ensaio faz referências indiretas a outras obras e pessoas, como:

1. Os filmes de Triet, obviamente, “Sibyl” (2021) e “Anatomia de uma queda” (2024).
2. “Volta por cima” (1962), composta por Paulo Vanzolini e imortalizada na voz de Beth Carvalho.
3. O poema “Touro na cabeça” (2019), de Guilherme Dearo, emoldurado na parede do corredor da minha casa.
4. “Já é” (2000), de Jorge Aragão.
5. Meu professor Joel Birman, que uma vez disse que só faz análise quem já encarou o diabo nos olhos.
6. Meu professor Pedro Eiras, que me mostrou as entrevistas de Jean Genet.

 

Morgana Rech é psicanalista, doutora e pesquisadora de pós-doutorado em Teoria Psicanalítica na UFRJ. Publicou quatro livros: uma tese de doutorado e três livros de poemas, dos quais renegou dois. Fundou e edita a Subversa, junto com Tânia Ardito e Fabíola Weykamp.